ANÁLISE DE CONJUNTURA 2020
ANÁLISE DE CONJUNTURA 2020
Retiro anual da Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas
Caucaia – CE
7 a 14 de janeiro de 2020
Pe. Nelito Dornelas
Primeira parte: Apontamentos para uma possível análise de conjuntura
O mal-estar que se explode com grande força nos protestos recentes em vários países da América Latina e do Caribe, carregados de violência, não nova, porém mais volumosa, parece a explosão de um mal estar e de um ódio que já não podiam mais ser contidos.
Esta efervescência social nos confunde e é, muitas vezes, propagada pela mídia como movimentos cooptados por grupos políticos, sem considerar as causas reais dos processos sociais emergentes. É um mal estar generalizado que precisa ser visto com mais cuidado e atenção em nossas análises.
Para fazer uma análise mais ampla do cenário em nosso continente há que superar a visão estreita polarizada de “direita” e “esquerda”. As leituras ideológicas facilmente têm a tendência à simplificação maniqueísta: os bons contra os maus. Esta é uma leitura válida e indispensável, porém, insuficiente.
Sozinha pode alimentar ainda mais a crescente polarização existente na sociedade, pois, o clima que essas leituras ideológicas criam torna-se propício para suscitar e manter ainda mais o ambiente de violência, desgarrando-se e desligando-se do tecido social real. Ela, sozinha, não permite mudar a realidade e não nos favorece a leitura com profundidade e clareza das crises antropológico-cultural subjacentes à sociedade.
As leituras ideológicas de esquerda e de direita convencionais são filhas da “modernidade Ilustrada”, que não nos permitem observar adequadamente os fatos em suas causas e momentos de “mudança de época” como estamos vivendo agora.
O Documento de Aparecida afirmou reiteradamente que não vivemos mais numa época de mudanças, mas numa “mudança de época”. É uma chave de leitura a partir do cultural antropológico mais abrangente que a leitura ideológica. Claro que é uma opção entre outras, porém, parece ser mais adequada neste cenário atual.
Desde o Concílio Ecumênico Vaticano II, os documentos do magistério vêm nos chamando atenção para uma crescente deterioração da sociedade. Num primeiro nível denunciava a existência de uma sociedade “pós cristã”, depois “pós humana”, em seguida “pós ética”, agora, “pós democrática”, “pós verdade”, “pós sustentável” e finalmente, o “eclipse da razão”.
Merece destaque a constatação da sociedade regida pela “pós verdade”, na qual o “Fake news”, as falsas verdades vêm dominando a mente e o coração das pessoas e deteriorando a vida em sociedade.
É necessário grande esforço para entender e distinguir entre o que está acontecendo com os movimentos sociais e com os grupos que foram cooptados pela política, não obstante essa diferenciação venha misturada e cada um deles se encontra num cenário político específico.
Apresentamos alguns elementos para compreendermos o que se passa em nosso continente e no mundo neste momento.
O que está acontecendo nos últimos meses em diversos países da América Latina e do Caribe, como Haiti, Porto Rico, Nicarágua, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Chile e Brasil, um caso à parte, em si, não corresponde a uma suposta conspiração secreta internacional, seja de direita ou de esquerda, tampouco estamos na mesma situação que caracterizou a Guerra Fria no mundo bipolar durante o século 20.
1- As causas do mal-estar, a partir de um ponto de vista mais amplo.
Podemos afirmar que o mal-estar social que hoje se instalou em nosso continente tem muitas e variadas raízes e corresponde a causas mais profundas e estruturais.
No primeiro nível pode-se detectar as causas como a pobreza, a desigualdade social e a corrupção generalizada.
No caso específico do Chile, as manifestações ocorrem de forma desorganizada e sem grandes lideranças. Os protestos se iniciaram contra o aumento de passagens do metrô, questionando os pilares fundamentais de um modelo econômico extremadamente liberal implantado pela ditadura do General Augusto Pinochet e que se estende até os dias atuais. São protestos contra a mercantilização da educação, dos serviços públicos e das aposentadorias. Uma indignação contra a grande desigualdade social no país. Algumas ações violentas são uma resposta aos escândalos de abuso sexual, protagonizados por ministros ordenados da Igreja católica e pela conivência da Igreja com os regimes autoritários ali instalados.
No segundo plano mais estrutural é preciso reconhecer a crise das democracias contemporâneas e as graves deficiências dos modelos econômicos ultra neoliberais.
No terceiro nível mais profundo se encontram as crises culturais contemporânea das instituições da sociedade civil e das políticas construídas no modelo da modernidade, ou seja, a partir do viés da direita o da esquerda, que não conseguem mais responder às necessidades reais das populações.
E as novas gerações são altamente indiferentes diante dos “grandes relatos”, sejam eles de qual vertente ideológica vierem.
2- Atualmente, a participação em instituições políticas convencionais, como partidos e sindicatos, é vista por muitos com suspeita pelos altos níveis de corrupção e de clientelismo em vários países da América Latina, enquanto que a grande maioria foi e continua sendo indiferente a estas instâncias de cidadania.
Doutro lado, existe um setor crescente da população que sempre se absteve da participação política partidária, vivendo à margem das organizações políticas oficiais, mas que resolveu agora assumir a militância política, através do voto desesperado em líderes mais ou menos messiânicos, canalizando nestes seus ódios e toda uma fúria contida e silenciada.
Esta parcela considerável da sociedade, sentindo-se insegura e alijada do poder de decisão politica resolveu instalar-se no poder através de manifestações de diversas naturezas, permitindo-se ser captadas por grupos de distintas naturezas, sejam anarquistas liberais, grupos ultraconservadores de extrema-direita de ideologias neofascistas ou neonazistas ou mesmo por movimentos de extrema esquerda radical.
A emergência de lideranças de perfil neopopulistas, resgatando no imaginário popular a realização mágica das grandes promessas de redenção social, nunca realizada, estão corroendo as bases humanas do tecido social, de tal forma que, além de não solucionar as crises reais atuais, estão criando novas crises que, a médio e longo prazo poderá tornar insustentável a vida em sociedade.
Estas novas crises construídas, seja pela ultra direita ou pela extrema esquerda neopopulistas são mais profundas ainda do que as atuais, sobretudo, por não solucioná-las, mas adiá-las ou ignorá-las.
O neopopulismo transcende o momento presente e passa a perdurar além da passagem do líder messiânico, devido aos efeitos em cascata da lógica do “quem não está comigo está contra mim”. Uma nova crise se instala quando parcela da sociedade começa a perceber que foi traída.
3- Existem instâncias da sociedade civil que pensam e planejam a politica de forma global no continente.
No campo das esquerdas estão o Fórum de São Paulo e o Grupo de Puebla. No campo da extrema direta estão a Organización del Bien común, antes denominada Organización Yunque, o agrupamento “neocon” Norteamericanas Acton Institute, American Entrerprise Institute e o Instituto Milenium de Paulo Guedes, que agem de forma clandestina ou aberta em diversos países da América Latina e Caribe.
Estas organizações tendem a ganhar muito dinheiro com a crise atual no continente. E cada uma deles, de acordo com a sua natureza, tamanho e interesse procura influenciar decisivamente em suas economias. É importante notar que o tamanho da influência desses grupos vai depender das conjunturas locais e da correlação de forças na sociedade civil. Sua disputa é mais no campo ideológico.
4- No cenário atual assistimos ao avanço das ideologias ultra conservadoras de um lado, mas, ao mesmo tempo, os movimentos sociais emergentes de protesto e de reivindicações sociais promovem o elemento da subjetividade social como um de seus ingredientes principais.
Em todo caso, somos da opinião de que a Igreja deve promover um diagnóstico mais profundo dos cenários atuais, à luz da Doutrina Social e Ecológica, para além daquele definido pelas esquerdas e direitas, procurando compreender, primordialmente, o seu caráter antropológico cultural, para contribuir na construção de experiências que promovam a cultura do encontro e do diálogo, da paz social e da reconciliação, como forma de se opor e condenar de forma explícita todo e qualquer extremismo.
5- A Igreja deve criar espaços de diálogo entre pastores e cristãos leigos e leigas, lideranças políticas, líderes de movimentos populares, intelectuais, empresários, jovens, mulheres e minorias.
Há que apoiar a iniciativa do Papa Francisco da convocação de um Fórum mundial por outra economia, que seja globalizada e não mundializada, sustentável e solidária.
A não concordância com a teoria de conspiração que está hoje muito em voga é necessária para o discernimento eclesial dos “sinais dos tempos” seguindo sempre por métodos que permitam realizar interpretações analíticas e diferenciadas dos fenômenos sociais à luz da fé, do ensino social e ecológico do magistério. Isso é mais complexo do que as simplificações de “esquerda” e “direita”, no entanto, a médio e longo prazo, será mais proveitoso a nível social e pastoralmente.
Segunda parte: Balanço do primeiro ano do governo de Bolsonaro
O cenário atual, como já vimos, permite a ascensão de governantes como Bolsonaro, que com sua visão de neofacista e neonazista pretendem “desconstruir” em vez de “construir”; dividir em vez de unir, que discriminam a todos os diferentes sem perceberem que assim se colocam eles mesmos como diferentes e se autocondenam ao ostracismo.
De nada serve que Bolsonaro tente apostar no catastrofismo ético, em esterilizar a cultura, em ferir os valores sagrados da democracia e de suas liberdades, em continuar exaltando torturadores e ditaduras.
Será um perdedor como acabam sendo todos os pessimistas empedernidos. Marielle, profetiza da esperança, já ganhou a batalha contra ele. A jovem Greta de 17 anos é uma profetiza da esperança em defesa do planeta.
“Apesar de tudo, a democracia e os seus valores continuam avançando e crescendo em todo mundo. Em 2018, o número de países democráticos chegou a 99. Em 1978 eram apenas 40. Não chegamos ainda a uma democracia completa que defenda os direitos de todas as minorias, mas pelo menos sabemos distinguir entre liberdade e barbárie”, afirma Juan Aryas.
O cenário do Brasil
Encerrou-se um ano que ficará na memória como um caos permanente, sob o signo de uma figura cujo obscurantismo jamais poderá ser esquecido. Declarações e atos aberrantes do presidente e sua equipe, quando não crimes e ataques às próprias funções de Estado, foram pão de cada dia.
Entre a perplexidade geral e um imobilismo também causado por uma esquerda derrotada no tempo e na história, o absurdo se estabilizou e, por vezes, teve ares de normalidade.
O balanço de 2019 na perspectiva das vítimas dos ajustes fiscais, dos que perderam direitos na reforma da previdência é repudiável. Quem comemora são os grandes empresários que aplaudem calorosamente o ministro Paulo Guedes, porque ganham com a crise.
Estamos vivendo sob o império da impostura no campo nacional e internacional
Crítica às ONGs, ao ator Leonardo Di Caprio culpando-os de incentivar os incêndios da Amazônia, difamação ao educador Paulo Freire e ao cientista Ricardo Galvão, negar a dar o prêmio Camões a Chico Buarque, mentir e alimentar ódio e rancor contra homoafetivos, LGBTI, indígenas, quilombolas, mulheres e nordestinos. A lentidão no julgamento dos crimes e massacres. O derrame de petróleo em 300 praias de 100 municípios do Nordeste, sem providência.
Leonardo Boff refere-se ao psicanalista francês, Roland Gori que escreveu La fabrique des imposteurs (Paris 2013). “Para ele, o impostor é aquele que prefere os meios aos fins, que nega as verdades científicas, que distorce a realidade solar, que não se rege por valores, porque é apenas um oportunista, que afirma algo e logo depois o nega, conforme suas conveniências, que pratica a arte de iludir as pessoas, ao invés de emancipá-las pelo pensamento crítico, que despreza o cuidado pelo meio ambiente, que passa por cima das leis, que despreza os pobres e não conhece o que é o amor nem a piedade.”
Isso é um retrato da atmosfera de impostura reinante nas mais altas instâncias políticas do Brasil. As medidas contra a educação, a saúde, a ciência, ao meio ambiente e aos direitos humanos concretiza a mais rude impostura contra tudo o que se construiu de positivo nos últimos decênios. A impostura nos faz surdos aos clamores. Por causa disso, o destino humano dificilmente escapará de uma tragédia. Veja o caso da COP 25, em Paris, foi um fracasso total.
De onde poderá vir uma solução
“Parece óbvio que a resposta a tais dilemas não será dada pela esquerda institucional. O que consigo imaginar para breve é algo muito parecido com o que se vê na América Latina: um conjunto grande de insurgências populares urbanas, com feições heterogêneas, com escala de massas, sem lideranças claramente identificadas e com uma agenda de enfrentamento da mercantilização radical de todos os setores da vida social, ensejada pelo ultraneoliberalismo comandado por Paulo Guedes” (Ruy Braga)
Uma retrospectiva
O primeiro ano deste governo fica marcado pelo signo da instabilidade. Aquilo que a sociedade herda do período de crise de 2015 para cá, uma combinação de crise econômica com política, resultante em profunda crise social, não se estabilizou.
Uma questão grave: o desemprego. De novembro de 2017 até os últimos dados sobre o emprego a taxa geral de desemprego está estável, no entanto, percebemos claramente uma deterioração do mercado de trabalho brasileiro.
Mais empregos informais no lugar dos formais, um movimento de insegurança para as famílias submetidas a esta situação. Isso significa que mesmo com este 1% de crescimento ao ano há uma deterioração das condições gerais de contratação, acompanhada do aumento da concentração de renda. O endividamento das famílias é outra consequência, gerenciado por intermédio da liberação do FGTS.
Do ponto de vista das condições gerais da política, o fato de ser um governo novo permitiu superar a situação de aguda crise política do governo Temer, de corrupção, escândalos e baixíssima popularidade.
Como se explica? A decantação da extrema direita pela sociedade brasileira, que encontrou em Bolsonaro um meio de expressar seus ressentimentos, neuras e taras. Isso em alguma medida sustenta seus 30% de popularidade. Já caiu muito após a eleição, mas se estabilizou nesses 30%, um número que não é de total adesão, não é tão firme. O núcleo bolsonarista consistente é de 12% a 15%. Mas tem 30% da sociedade disposta a apoiar tal governo, o que é muita gente.
Isso passa pela crise econômica, pela identificação do PT como causador da atual política econômica, através da corrupção e também por conta do segundo mandato da presidente Dilma, marcado por políticas que não deram certo e aprofundaram a recessão.
Mas tem outro componente: a aproximação de parte da população da agenda conservadora, expressa na aproximação pentecostal/evangélica. Existe um setor da sociedade que garantiu sua eleição, o voto evangélico/pentecostal, que fez a diferença entre Bolsonaro e Haddad.
A respeito da instabilidade e depressão econômica, que não se superou, houve uma reacomodação do jogo de forças em torno do presidente e seus ministros mais populares, como Sérgio Moro, o que lhe garantiu fôlego ao primeiro ano de governo. E no espectro oposto é de se supor alguns fatores que também expliquem este fôlego.
Houve um retrocesso dos movimentos sociais e populares e dos partidos políticos do campo de centro-esquerda. Isso se deu como consequência de todo o processo que terminou com o impeachment da presidente Dilma, de certa forma desde 2013, quando um nível de atividade política muito intensa se viu por todo o país, até 2017, ápice da instabilidade de Temer. E duramente golpeado em 2018 com a prisão do ex-presidente Lula e a impossibilidade de sua candidatura, seguida da vitória de Bolsonaro e o estancamento de um projeto progressista.
O ano de 2019 fica marcado por essas condições, incluindo a insegurança econômica, e termina sob a marca da desmobilização social, motivada pelo contexto de derrota de 2018 e esgotamento das forças políticas e também sociais, o que vinha desde 2013. Forças sindicais, populares urbanas, estudantis, feministas, LGBTIs, negros e negras, indígenas e ambientalistas foram duramente atingidas pela repressão, sobretudo, a partir de 2018.
Como entender essa desmobilização?
“Um dos fatores é a incapacidade que a esquerda tem de construir um projeto alternativo ao lulismo. Quando se deposita toda sua energia em ganhar uma eleição, tida como último recurso para conter os avanços da direita, e o candidato mais forte é preso e excluído da competição, revela-se com muita clareza a inexistência de projetos alternativos ao lulismo” (Ruy Braga).
Vivemos tamanha desmobilização porque, de um lado, houve uma derrota política e, de outro, a incapacidade em se criar um projeto alternativo ao que foi derrotado em 2018. Por isso a ausência de manifestações contrárias a este projeto nas ruas, nos locais de trabalho e ficamos sob o clima de pasmaceira generalizada. Limitando-se na possibilidade de se fazer política apenas no âmbito parlamentar. Temos bastante ativismo partidário nos parlamentos, mas isso não tem vinculação direta com mobilizações de rua.
Uma questão séria ainda sobre a extrema direita
Como compreender tal fenômeno, ao sabermos que o discurso moralista não se sustenta na realidade, dado que os vínculos de Bolsonaro e seu círculo com a corrupção e até a mafialização da vida pública são de considerável conhecimento e não exatamente refutados.
Como compreender a estabilização mesmo diante da fragilidade da sua moralidade?
Temos um aparato repressor centralizado no Estado, com disciplina rígida, comando, organização interna, que banca a estabilidade deste governo. Exército e Polícia Federal conservadores, banqueiros, grandes empresários e a adesão de setores médios tradicionais a uma agenda conservadora reacionária, principalmente do ponto de vista econômico, onde o ultraneoliberalismo autoritário de Paulo Guedes tem alguma popularidade.
São setores que ganharam muito no período lulista, experimentaram a crise e se divorciaram definitivamente de qualquer agenda progressista, o que se via em boa medida desde a redemocratização.
É uma parcela da população que tem dinheiro aplicado no mercado financeiro e se divorcia dos governos petistas mais pelos seus méritos que defeitos, isto é, aumento dos empregos em carteira, formalização de trabalhadores domésticos, tentativa de desconcentrar a renda por meio do trabalho.
Esses setores aderem a uma agenda autoritária do ponto de vista econômico e isso tem efeito, por ser um setor influente, que forma opinião, tem acesso aos meios de comunicação e certo nível de estudo. Por isso o governo é bem avaliado entre aqueles que têm nível superior.
Outro grande elemento inovador é o apoio popular a uma agenda conservadora em costumes, o que não é tanta novidade no Brasil. No entanto, mostra certa tensão no âmbito das classes subalternas, entre o pragmatismo ligado à reprodução da vida cotidiana, salário, renda, emprego, segurança e uma agenda conservadora do ponto de vista dos costumes.
No governo Lula, enquanto houve certa prosperidade entre setores populares, tal tensão foi mitigada, adiada, de modo que essa agenda teve de esperar um pouco adiante da melhoria das condições de vida daquele momento.
Assim, a maioria dos setores evangélicos votava em Lula e Dilma. No entanto, no contexto de crise, esses setores, que já eram conservadores, mas faziam concessões diante do pragmatismo político, se afastaram completamente.
A equação do conservadorismo é: o aparato repressor reacionário, o que inclui o Judiciário, como se este poder fosse salvar o país; as classes médias que aderem ao projeto ultraliberal; o empresariado que adere à agenda de Paulo Guedes e o setor popular ligado às igrejas pentecostais e neopentecostais, aderente ao governo por conta da agenda de costumes, o que se reflete na popularidade de Damares.
Como imaginar o futuro próximo, ao considerar que a queda nas condições de vida das maiorias é inequívoca?
Parece óbvio que a resposta a tais dilemas não será dada pela esquerda institucional. O que parece provável é algo muito parecido com o que se vê na América Latina: um conjunto grande de insurgências populares urbanas, com feições heterogêneas, com escala de massas, sem lideranças claramente identificadas e com uma agenda de enfrentamento da mercantilização radical de todos os setores da vida social.
Teremos pelo Brasil, num futuro próximo, um nível mais agudo de enfrentamento contra este modo de articulação de diferentes movimentos de mercantilização, quer seja do trabalho como se vê no recuo da proteção do emprego, dos direitos trabalhistas, da previdência; na mercantilização das terras urbanas, com segregação espacial e agudização da repressão aos setores populares das periferias; na multiplicação do tipo de tragédia de Paraisópolis, tendo a PM como ponta de lança deste processo de repressão/mercantilização territorial; na mercantilização das terras rurais, em especial com o avanço do agronegócio e da mineração ilegal, inclusive sobre reservas e terras indígenas, e uma ameaça ao meio ambiente que aumenta e se torna mais irreversível a cada dia.
Por fim, toda essa mercantilização se liga profundamente ao rentismo e à financeirização, através do endividamento das famílias junto aos bancos e concentração cada vez maior de renda, o que estimula o aumento das dívidas das famílias, que não cessa, só se aprofunda.
Temos ainda uma mercantilização que se vê na Reforma da Previdência, nas poupanças, na informalidade do trabalho, tudo convergindo em múltiplas formas de mercantilização da vida.
Isso estimulará respostas massivas e diversas. E não teremos respostas setoriais, como se viu no passado. Poderemos ver algo muito parecido com o processo chileno, com descontentamento geral na base da sociedade, que se transformará em insurgência social.
Este tipo de centelha poderá vir de lugares não imaginados, como o setor de transportes, rodoviários, caminhoneiros. Afinal, nenhuma das razões da greve dos caminhoneiros de 2017 foi realmente superada ou enfrentada pelo atual governo, por mais que haja afinidade política e ideológica entre eles. Estamos num barril de pólvora!