ELEIÇÕES MUNICIPAIS 2020
ELEIÇÕES MUNICIPAIS
Apontamentos para uma possível análise das eleições municipais de 2020
Por Pe. Nelito Dornelas
Apresento uma síntese feita por especialistas sob diversos olhares convergentes.
1. O que está em jogo no Brasil até 2022 não é simplesmente a disputa de lideranças e forças partidárias pelo governo. É a necessidade de conter a ação destruidora do bolsonarismo contra a democracia, as instituições, a ciência, a cultura e o meio ambiente e também de enfrentar as ameaças à saúde da população em razão do negacionismo, à segurança pública pela cumplicidade com as milícias e à economia pela irresponsabilidade política.
2. Lógica da Guerra. Bolsonaro começou o governo em 2019 já em guerra aberta com as instituições e a sociedade, contando com suas redes de seguidores, simpatia de policiais e milicianos, alianças exóticas com conservadores radicais e liberais dos mercados, além do suporte de igrejas evangélicas e militares. Parecia acreditar que venceria nas múltiplas frentes que abriu simultaneamente contra o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a imprensa, artistas, professores, cientistas, ambientalistas, sindicatos, movimentos sociais e identitários e quem mais fosse considerado inimigo.
3. Em 2020, porém, a resistência passou a ter efeitos. Bolsonaro esbarrou em obstáculos e teve de recuar e buscar o socorro de novas alianças. O ponto crucial foi o começo da pandemia da Covid 19. A atitude da sociedade, das instituições e da própria máquina do estado contrariou a posição negacionista de Bolsonaro. A blitz contra o Congresso, STF e imprensa foi contida graças à mobilização da sociedade e à reação das instituições. Houve recuo nos atos antidemocráticos e campanhas de fake news, que viraram caso de polícia.
4. Além disso, a derrota de Trump deixou Bolsonaro mais isolado no mundo e mostrou o quanto é potente o voto democrático sustentado na mobilização da sociedade. A derrota nesta eleição é para Bolsonaro mais um episódio numa sequência de obstáculos e desgastes políticos. Além dos recuos que teve de fazer em várias frentes, Bolsonaro continuará sob pressão das instituições que seguem em alerta contra as ações antidemocráticas, as redes de fake news e o negacionismo genocida. E será cada vez mais cobrado pela destruição ambiental, pelos desastres administrativos e também pelas acusações criminais que pairam sobre seus filhos e colaboradores próximos.
5. Bolsonaro também não parece ter respostas convincentes para a saída da crise social e econômica provocada pela pandemia. O desemprego alcançou o recorde de 14,6% em setembro e instituições financeiras projetam mais de 16% para o começo de 2021, mesmo considerando o aumento de contratações formais em outubro passado e a expectativa de início da vacinação contra a Covid 19. A taxa de informalidade ultrapassou 38% também em setembro. Neste cenário de vulnerabilidade social, presidente embarga a renovação do auxílio emergencial para os mais pobres com o argumento de limitações fiscais. O cenário para as pequenas e médias empresas segue ameaçador. E até agora não houve acordo no Congresso para a aprovação de matérias relacionadas ao orçamento do ano que vem.
6. O resultado da eleição municipal, com a vitória de candidatos moderados e partidos de centro, parece revelar, ao menos nas grandes cidades, uma aposta na habilidade de negociação, no equilíbrio e na redução de conflitos. A vontade é de que os políticos eleitos sejam capazes de somar forças para enfrentar desafios cada vez maiores, não só a pandemia como a crise econômica e social, além da precariedade de serviços públicos comum à maioria das cidades do país.
7. O voto desta vez pode ter mostrado suspeita e desencanto com relação a rupturas, a propostas radicais e a líderes e partidos que desonram seus programas e promessas. Pode ter sido dado um recado à política das agendas ocultas da esquerda tradicional e da extrema direita.
8. No vácuo de Lula, dois líderes mais jovens da esquerda, Manuela D’Ávila do PCdoB, em Porto Alegre, e Guilherme Boulos do PSOL, em São Paulo, não alcançaram a vitória, mas fizeram bons resultados.
9. Contagem regressiva. Do Centrão não se pode esperar que renuncie à sua natureza. Vai continuar leiloando o seu apoio circunstancial. Mas o centro político com nuances mais a esquerda ou direita, que também ficou fortalecido nesta eleição (PSDB, DEM e parte do MDB), terá a obrigação de não decepcionar o eleitor dando resposta imediata e satisfatória à população e ao mesmo tempo constituir uma frente capaz não só de enfrentar o bolsonarismo na próxima eleição mas também e primordialmente de conduzir até lá o dia a dia da gestão pública em suas cidades, das negociações no parlamento e do diálogo com a sociedade.
10. De Bolsonaro também não se pode esperar que renuncie à sua natureza de pretendente ditador. Cabe, portanto, aos amigos da democracia perseverar na crítica e na mobilização para que seja contido na sua ação destruidora e recue do projeto autoritário até que seja zerada a contagem regressiva do seu governo com a derrota em 2022 ou antes disso se for encurtado o seu mandato por um impeachment caso tente ultrapassar os limites da Constituição.
11. O resultado desta eleição pode ter mostrado, numa interpretação otimista, que o vírus autoritário do bolsonarismo vai produzindo seus anticorpos, a rejeição da antipolítica, do preconceito e da indiferença pelos mais vulneráveis.
12. As eleições locais são muito distintas porque são introduzidos fatores de distorção que correspondem aos conflitos da pequena política local. Por outro lado, também é necessário alertar que um processo de eleição municipal em milhares de municípios, quando os números são totalizados, produz uma distorção porque há um Brasil profundo. Estamos falando de um país continental, como muito poucos no mundo.
13. O Centrão governista ganhou seis capitais e elas não estão entre as mais importantes do país: Cuiabá, Campo Grande, Manaus, Rio Branco, João Pessoa e São Luís. Mas o bolsonarismo sofreu uma dura derrota no Rio de Janeiro, com Crivella [Republicanos]. Russomanno [Republicanos] terminou com apenas 10% dos votos em São Paulo, quando tinha iniciado a campanha em primeiro lugar. Os demais candidatos bolsonaristas em Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis e Belo Horizonte também não tiveram senão um desempenho marginal.
14. O PSL, partido que recebeu a verba mais volumosa do fundo eleitoral, não ganhou em nenhuma das seis cidades mais populosas do país. O Republicanos, embora seja uma sigla importante e tenha no seu interior um forte peso bolsonarista, responde essencialmente à Igreja Universal e perdeu peso no eleitorado governado: caiu de 7,1 milhões de eleitores para 5,3 milhões, vencendo em apenas três das cem maiores cidades.
15. No campo político de centro esquerda temos os seguintes resultados: PDT desde 2016 governava 334 prefeituras, agora serão 314; PSB desde 2016 governava 414 prefeituras, agora serão 253; PT desde 2016 governava 261 prefeituras, agora serão 183; PC do B desde 2016 governava 80 prefeituras, agora serão 46; REDE desde 2016 governava 5 prefeituras, agora serão 6; PSOL desde 2016 governava 2 prefeituras, agora serão 5. Número de indígenas eleitos em todo o Brasil são 150 e em Minas Gerais são 16.
16. Na verdade, o bloco liderado pelo PSDB, MDB e o fortalecido DEM é uma expressão política da direita liberal. O Centrão governista venceu em seis capitais, ainda que não sejam as principais de cada região. Merece destaque o fortalecimento dos progressistas do PP e do PSD, de [Gilberto] Kassab. Republicanos e Podemos perderam espaço em termos relativos do eleitorado sob a sua gestão. Esses partidos da direita tradicional não bolsonarista obtiveram uma vitória eleitoral: venceram em 15 capitais, ganharam a maioria das principais cidades do país e venceram em São Paulo com Bruno Covas, no Rio de Janeiro com Eduardo Paes, em Belo Horizonte com [Alexandre] Kalil, em Salvador com o herdeiro do ACM Neto, em Curitiba com a reeleição de [Rafael] Greca, e venceram, finalmente, também em Porto Alegre com [Sebastião] Melo, do MDB.
17. O destaque é para o DEM, que venceu quatro capitais e disputa ainda Macapá. Além disso, o partido ampliou de forma significativa a sua participação no eleitorado governado de 7,9 para 17,7 milhões de habitantes, e a receita orçamentária de 32,5 para 91 bilhões de reais. E ganhou, finalmente, em dez dos cem maiores municípios.
18. O PSDB caiu em termos de prefeitura e de eleitorado governado, que passou de 34,6 milhões de habitantes para 24,8 milhões. Perdeu receita orçamentária controlada de 183,2 para 155,1 bilhões, mas obteve um resultado muito expressivo no estado de São Paulo porque venceu na capital e isso, evidentemente, tem um sentido simbólico, político e ideológico fundamental, e em quase 200 municípios no estado. Além disso, o PSDB venceu em 16 dos cem maiores centros urbanos do país. O MDB fez cinco capitais e Porto Alegre é, de longe, a mais importante, e ganhou 18 das cem maiores cidades. Mas caiu, paradoxalmente, em número de prefeituras e eleitorado governado, de 21 milhões para 18,9 milhões de habitantes.
19. Desempenho do PT. Apresento alguns dados que são essenciais para entendermos o desempenho do PT. O primeiro é que o partido não elegeu prefeito em nenhuma capital pela primeira vez desde 1988. Nas grandes cidades, em relação a 2016, aumentou, subindo de quatro para sete prefeituras, dentre cem. Em números gerais, diminuiu o número de prefeituras em relação a 2016, caindo de 254 para 183, que é o pior desempenho em 16 anos. O número total de habitantes que será governado por gestões do PT aumentou: em 2016 eram 6,33 milhões e agora serão 6,45 milhões, um aumento quantitativo na margem.
20. A relação política de forças no interior da esquerda mudou porque houve um avanço qualitativo da influência do PSOL e uma redução da influência do PT. Dentro do que podemos chamar do bloco da esquerda, o PT está relativamente mais fraco. Ainda é o maior partido de esquerda, mas está mais frágil e mais fraco do que nunca.
21. Salto qualitativo do PSOL. O PSOL deu um salto de qualidade na sua influência e audiência política não só porque ganhou em Belém com a candidatura de Edmilson Rodrigues e porque teve mais de dois milhões de votos em São Paulo, projetando uma nova figura nacional que tem uma imensa estatura, que é Guilherme Boulos, mas porque fortaleceu qualitativamente a sua presença nas Câmaras Municipais das cidades mais importantes do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. Se no Rio de Janeiro passou de cinco para seis vereadores, em São Paulo passou de dois para seis e ampliou em 50% o número total de vereadores eleitos, chegando a 88. Portanto, o PSOL muda o seu patamar dentro da esquerda e passa a ter muito mais responsabilidade, entre outras razões, porque a figura de Guilherme Boulos surge como uma referência fundamental no destino da luta para derrotar Bolsonaro.
22. O PCdoB confirma uma tendência de enfraquecimento e perde o estatuto de segundo partido da esquerda, que já teve no passado, porque perdeu em número de votos, em número de prefeituras, em número de vereadores, teve um desempenho muito frágil no Maranhão; mas tem como compensação a reafirmação de Manuela D’Ávila, que chega ao segundo turno em Porto Alegre e se mantém como uma das novas lideranças de autoridade e respeito nacional em toda a esquerda. Mas se considerarmos de conjunto, a situação do PCdoB é de fragilização e tem no horizonte a ameaça da cláusula de barreira de 2022, que evidentemente é estratégica.
23. O bloco liderado por Ciro Gomes, construído fundamentalmente em torno do PDT e do PSB e de partidos menores, que se aliam ao projeto presidencial de Ciro Gomes, manteve posições, mas não avançou. Venceu em quatro capitais, todas no Nordeste: Recife, Fortaleza, Aracaju e Maceió, mas não avançou no Sudeste, no Sul ou no Norte. Em São Paulo, [Márcio] França [PSB] e, no Rio de Janeiro, Martha Rocha [PDT] sucumbiram, não abriram nenhum caminho e os seus partidos tiveram oito vitórias entre os cem maiores municípios, quando tinham alcançado 12 em 2016. Dentro desse bloco, o PSB perdeu mais prefeituras e caiu de 11,7 para 6,9 milhões de pessoas que estão em cidades sob a sua gestão. O PDT manteve o patamar das suas prefeituras e caiu de 8,4 para 7,8 milhões de pessoas que estão em cidades sob a sua gestão.
24. A relação social de forças continua desfavorável e estamos numa situação reacionária, em que prevalece a unidade da classe dominante. Os capitalistas continuam numa posição de força relativa maior, mas podemos reconhecer uma inflexão na conjuntura, com um enfraquecimento relativo do governo Bolsonaro e do bolsonarismo como força política se pensarmos o período aberto no final de fevereiro e início de março com o impacto da pandemia e todos os seus desdobramentos. É nesse contexto que a representação tradicional ou da classe dominante avança, mas também ocorre uma recuperação relativa da influência da esquerda. É nesse contexto que se abrem as perspectivas para 2022.
25. Qualquer prognóstico para as eleições de 2022 seria precipitado. No Brasil é difícil fazermos previsões para o que vai acontecer nos próximos três meses, quanto mais para o que vai acontecer em dois anos. O governo Bolsonaro se revelou, até o momento, incapaz de enfrentar a ameaça sanitária mais importante que a nação vive nos últimos cem anos e já anunciou que a sua meta é a vacinação de um terço da população brasileira. Evidentemente, só existe a possibilidade de imunidade coletiva se a vacinação superar o nível de 70% de toda a população.
26. De outro lado, a suspensão do auxílio emergencial e a indefinição de qual será o formato da política pública que vai substituir o Bolsa Família criam uma enorme insegurança social, porque os níveis de desemprego são os mais elevados que o Brasil conhece desde o final da ditadura.
27. As crises sanitária e social devem estar associadas também a uma crise econômica, porque é difícil vislumbrar uma recuperação dinâmica da economia se não ocorrerem grandes investimentos, que teriam de ser internacionais. É pouco provável, diante do contexto de isolamento internacional do governo Bolsonaro, que haja uma disposição dos grandes fundos capitalistas internacionais de fazer apostas de risco no Brasil.
28. O ano de 2021 será um ano de grandes conflitos sociais no Brasil, especialmente por conta dos efeitos da pandemia e das incertezas acerca da política pública que irá substituir o Programa Bolsa Família. Será um ano de grandes lutas sociais, em que estará colocada para a esquerda a tarefa de liderar a oposição ao governo Bolsonaro e, portanto, a luta pelo direito à vida, à vacinação universal e obrigatória, a defesa de uma política pública de seguridade social que não poderia ser outra senão a manutenção de um auxílio emergencial enquanto estivermos sob o flagelo da pandemia. Devem se articular as lutas de resistência social.