QUARESMA, ESPIRITUALIDADE ECLESIAL
Quaresma, espiritualidade eclesial
Pe. Nelito Dornelas
Iniciamos na quarta-feira de cinzas, a grande celebração anual da páscoa, num único tempo pascal.Embora a quaresma venha antes, não se trata de primeiro celebrar a cruz para depois celebrar a ressurreição. Apesar de que na prática das celebrações esse processo acontece, não devemos separá-las.
Jesus, ao aparecer aos seus discípulos após a ressurreição, ele mostra-lhes as mãos e o lado, testemunhando que o Ressuscitado é o Crucificado e o Crucificado é o Ressuscitado (João 20,20; 25-27).
Quem melhor expressou esta união foi Santo Agostinho, ao afirmar que foi instituída a celebração de dois tempos: um antes da Páscoa e outro depois da Páscoa. O tempo precedente à Páscoa figura a tribulação em que nos achamos; o que celebramos após a Páscoa lembra a felicidade futura em que nos acharemos. Antes da Páscoa, portanto, celebramos o que vivemos; depois da Páscoa celebramos, assinalando, o que ainda não temos. Por isso, no primeiro tempo exercitamo-nos em jejuns e orações; agora, terminados os jejuns, passamos o tempo em louvores. Tal é o sentido do Aleluia que cantamos. Aleluia se traduz para o latim, como sabeis, por: ‘Louvai ao Senhor’. O primeiro tempo, portanto, representa a fase anterior à ressurreição; o segundo, a posterior à ressurreição do Senhor. Significa a vida futura, que ainda não possuímos.
A celebração da páscoa nasceu entre os monges no Egito por volta de 384 d.C e a sua preparação foi se estendendo para seis semanas, surgindo assim a quaresma, introduzindo o símbolo litúrgico do número 40.
Na tradição religiosa 40 é o número da espera, da preparação, da provação e do aniquilamento.
Os escritos bíblicos descrevem a história do povo aplicando esta simbologia, assim temos o reinado de Davi por quarenta anos (2 Samuel 5,4); e também o reinado de Salomão (1Reis 11,42).
Temos os quarenta dias e quarenta noites de chuva no dilúvio (Gênesis 7,17); Moisés é convocado por Deus aos quarenta anos; quarenta anos de caminhada do povo pelo deserto; quarenta dias de Moisés no Monte Sinai (Êxodo 34,28); quarenta dias de afronto de Golias contra o povo até quando Davi o enfrentou e o abateu (1Samuel 17,16); quarenta dias de caminhada de Elias para o monte de Deus, o Horeb (1Reis 19,8); quarenta dias da pregação de Jonas em Nínive (Jn 3,4).
E lembramos principalmente o retiro de quarenta dias de Jesus no deserto (Mateus 4,1-11; Marcos 1,12-13; Lc 4,1-13). Jesus pregou quarenta meses, morreu e ressuscitou e volta ao Pai depois de quarenta dias de ressurreição. Este número está presente em tantas outras passagens bíblicas.
Trata-se de um número simbólico que nos convida a voltarmos para Deus, neste tempo de quaresma, como foi o convite feito por Jonas durante sua pregação ao povo de Nínive, que teve quarenta dias para se converter e alcançar a misericórdia de Deus (Jonas 3,1-16).
A espiritualidade quaresmal tem seu sentido verdadeiro no mistério pascal de Jesus Cristo, que culmina no tríduo pascal e que é o fundamento de todas as nossas celebrações cristãs.
A Sacrossanctum Concilium nos diz, no número 109: tanto na liturgia quanto na catequese litúrgica esclareça-se melhor a dupla índole do tempo quaresmal, que, principalmente pela lembrança ou preparação do batismo e pela penitência, fazendo os fiéis ouvirem com mais frequência a Palavra de Deus e entregarem-se à oração, os dispõe à celebração do mistério pascal.
Na quaresma somos convidados a fazer uma verdadeira experiência na participação do mistério pascal de Jesus Cristo. Sofremos com Cristo para participar de sua glória (cf. Romanos 8,17).
A quaresma tem caráter essencialmente batismal, sobre o qual se baseia o caráter penitencial. Na verdade, a Igreja é comunidade pascal porque é batismal. Isso deve ser afirmado não só no sentido de que nela entramos mediante o batismo, mas principalmente porque a Igreja é chamada a exprimir em sua vivência de contínua conversão o sacramento que gera. Daí também o caráter eclesial da quaresma. Ela é o tempo de grande convocação de todo o povo de Deus, para que se deixe purificar e santificar por Jesus de Nazaré, o Cristo da fé, Senhor da história.
A Ele sejam dadas a honra, a glória, a riqueza, a sabedoria, a força e o poder (Ap 5, 12).