FRATELLI TUTTI - UMA LEITURA

 

Uma leitura da Fratelli Tutti - Pe. Nelito Dornelas


Nas antigas cidades construídas atrás dos muros, encontravam-se os guardas noturnos, sempre vigilantes, em suas guaridas.

A cada manhã eles eram obrigados a prestar contas aos seus chefes, aos quais respondiam à seguinte pergunta: guarda, há alguma novidade nesta noite? E um relatório minucioso era apresentado.  

Como um sentinela da humanidade, o Papa Francisco, na Fratelli Tutti, nos apresenta um amplo relato sobre o cenário sombrio de incertezas, dúvidas, conflitos, divisões e crises de nossa sociedade atual, mas descreve também o rosto de um estranho caído à beira do caminho, na escuridão dessa longa noite que estamos atravessando e nos convida a gastar nosso tempo no cuidado com este rosto, construindo com ele e, a partir dele, para além dos gestos de solidariedade, a cultura da fraternidade.

De leitura obrigatória para todas as pessoas de boa vontade, para além das estreitas fronteiras de qualquer instituição, seja religiosa ou social, a Fratelli Tutti deverá ser nosso vade mecum, como o foi a Rerum Novarum de Leão XIII em 1891, a Quadragesimo Anno de  Pio XI em 1931, a Pacen in Terris de João XXIII em 1963, a Populorum Progressio de Paulo VI em 1967, a Solicituto Rei Sociales de João Paulo II em 1987, a Deus Caritas Est de Bento XVI de 2005 e a Laudato Si de Francisco em 2015.

Todas estas encíclicas sociais nasceram de dentro de um cenário nebuloso e de convulsões provocadas pelas revoluções culturais, industriais, econômicas, geopolíticas como a grande depressão de 1920, a ascensão do fascismo de Benito Mussolini, o nazismo de Adolph Hitler, a guerra fria entre Rússia e EUA, o advento da globalização neoliberal, a crise do sistema financeiro e disseminação da pandemia do corona vírus. Fratelli Tutti é um grito de socorro lançado pelo Papa Francisco tentando oferecer uma alternativa antes que seja tarde demais. 

Pio XI, em sua encíclica, fez contundentes críticas ao capitalismo de livre mercado e ao comunismo socialista, numa tentativa de desarmar a bomba antes que ela explodisse, esboçando uma terceira via, enraizada no ensino social católico e aberto às aspirações do apostolado leigo, que nascia pelas mãos da Ação Católica. Seus esforços falharam e houve uma explosão muito pior do que Pio XI poderia imaginar.

Resta-nos aprender com a história. Sabemos que a história não tem ética, ela é cruel. Nós, sim, os humanos podemos preencher de ética as durezas da história. O tempo dirá que impacto Fratelli Tutti terá na sociedade, dependendo de sua recepção ou não. 

Francisco vê um desafio entre duas alternativas falhas: individualismo neoliberal e o nacionalismo populista. Ele percebe que está se desenvolvendo um verdadeiro cisma entre o indivíduo e a comunidade humana (cf. n. 30). Um mundo que não aprendeu nada com as tragédias do século XX, sem senso da história (cf. n. 13). 

Parece haver um retrocesso: os conflitos, os nacionalismos, o senso social perdido (cfr. n. 11), e o bem comum parece ser o menos comum dos bens. Nesse mundo globalizado, estamos sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre a dimensão comunitária da existência (cf. n. 12). 

As pessoas desempenham o papel de consumidores ou de espectadores, e os mais fortes são favorecidos.

O diagnóstico do Papa das contradições internas do neoliberalismo é especialmente preciso no parágrafo 168: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal”, e continua: “A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”. 

É importante frisar que a crítica de Francisco ao hiper individualismo não é somente em matéria econômica, mas cultural, e isso não é sobre esquerda e direita, mas uma “fria, confortável e globalizada indiferença” com os outros. E denuncia um tipo de “nacionalismo míope, extremista, ressentido e agressivo” (11), que dá o tom para muitos outros que se seguem. 

“Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (45). “Manifestações públicas violentas, de um lado ou de outro, não ajudam a encontrar soluções" (232).

A terceira via que Francisco aponta é uma ética social da fraternidade humana e ecológica, enraizada no Evangelho, na parábola do Bom Samaritano, para além da frágil solidariedade, cuidado dos idosos, combatendo o racismo e a sexismo, tendo compaixão pelos imigrantes, estabelecendo alianças regionais, sustentando posições abolicionistas sobre guerra e pena capital, perdão da dívida para nações empobrecidas e fortalecendo a ONU.

Fratelli Tutti é inspirada em Francisco de Assis, que, em plena cruzada entre cristãos e mulçumanos, é capaz de estabelecer uma ponte de diálogo com o Sultão Islã. Seguindo este exemplo, Papa Francisco dá as mãos a Aḥmad al-Tayyeb, o grão-imã de Al-Azhar, para juntos assinarem um acordo de fraternidade entre Católicos e Mulçumanos. 

Abre-se ao exemplo e testemunho de Martin Luther King, de tradição Batista, Desmond Tuto, Anglicano e Mahatma Gandhi, hinduísta. E encontra no Bem aventurado Charles de Foucauld o testemunho atual de um católico, que, no século XX, gastou sua vida junto aos mulçumanos, fazendo-se irmão universal, transformando sua ermida em fraternidade e gritando o evangelho com a vida.

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