A utopia Brasil 1, 2 e 3
Pe. Nelito Dornelas
A UTOPIA BRASIL 1
Este artigo está sendo construído, justamente, no dia 22 de abril de 2019.
Nesta data comemoram-se o Dia Internacional da Mãe-Terra, declarado pela ONU;
o Dia da Comunidade Luso-Brasileira, em homenagem ao desembarque de Pedro Álvares Cabral, em Porto Seguro-BA, em 1500; dia do desembarque de Hernán Cortês de Monroy, em Vera Cruz, com 600 soldados, 16 cavalos e peças de artilharia, em 1517. E neste dia acontece a celebração da primeira missa, em Monte Pascal-BA, pelo Frei Henrique de Coimbra.
Para ajudar a compreender este dia e jogar um pouco de luz sobre nossa história e o contexto atual, revisitei um dos escritos do antropólogo Darcy Ribeiro, denominado Utopia Brasil. Este texto foi produzido a pedido de Leonardo Boff e assumido como prefacio de seu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos, publicado em 1980.
Fôramos, se a sorte sobejasse, o que buscava o Infante, queimando-se pelo amor de Deus com seu cinto de cilício e urdindo sua heresia pentecostal. Houve um Tempo do Pai de que reza o Velho Testamento. Depois, um Tempo do Filho de que o Novo Testamento é a crônica. Agora, é chegada a Hora do Espírito Santo, em que os homens edificarão o Paraíso neste mundo.
Os navegantes que primeiro aportaram às praias tropicais americanas com as naus de velas latinas, armadas de astrolábios, bússolas e lemes que o Infante lhes dera, cuidaram que chegaram ao Éden. Os europeus que primeiro põem os pés em terra brasileira se perguntam também, surpresos, se não seriam gente do Paraíso aquela indiada louçã na beleza inocente de sua nudez emplumada. Os índios, ouvindo a soleníssima missa primeira, na fala latina do padre engalanado, campainhas tinindo, galinhas inaugurais cacarejando, se perguntavam, certamente, se não seria o povo de Maíra que chegava para melhorar mais seu belo mundo já tão gozoso de se viver.
Inocentes marinheiros. Índios inocentes. Não podiam supor que presenciavam a montagem da mó do engenho que mais gente consumiu e corrompeu neste mundo, por amor da pecúnia.
Desde então, se desencadeia, atropelada, a porfia do real e da quimera. São golfadas de esperança vivida. São hecatombes de sofrimento atroz. No chão sólido do mundo, a comunidade indígena solidária do comunismo primevo, chamada à utopia da cristandade, se desfaz no cativeiro da civilização. Cento e sessent+a aldeias incendiadas. Passado tudo a fio de espada, cantaria depois, em versos mil, o tolo santo, na louvação ao braço secular subjugador do gentio – De Gestis Mendi Saa.
No chão espiritual, a utopia outra vez é sonhada. Calvino funda no Rio de Janeiro do primeiro dia para ser a Cidade de Deus, sem jaça nem graça. Generosos e desatinados, tão cheios de amor como de fúria, seus doze apóstolos genebrinos nem veem ali os Tamoios atentos que, pronto, seriam desfeitos. Só veem e só creem é nos 1.000 huguenotes que na verde terra ensolarada edificariam a utopia protestante. Logo desavindos se engalfinham, enforcando-se uns aos outros, por boas razões de doutrina e se afundando na pestilência e no pecado. Estala aí, então, a suja guerra santa de Mairs contra Perós, da Reforma e da Contrarreforma que se guerreia com os corpos dos índios confederados. Dez mil morrem para não caírem em tentação.
No balanço final das contas, a seara de Calvino só deu frutos podres de dor e de morte. Mas dela surgiram, inspirados, os textos utópicos que por séculos acalentam os homens: Tomás Morus, Erasmo de Roterdam, Campanella, Rousseau invertem o entendimento humano. Desalojam a utopia do Paraíso Perdido do passado e a projetam, mirifica, no futuro. O Éden não foi, nem se perdeu, porque não é dádiva divina. É tarefa de homens que se farão a si mesmos, no porvir, quando proibirem o passado de gerar o futuro com suas marcas.
Utopia mais veraz e persistente, concreta utopia, também enganosa e sofrida, foi a de Loyola, o possesso. Atado a todo atraso só quer reter o passado parado. Restaurar, contra o tempo, a verdade que não fora. Em sua fé abrasada, erra no discurso e erra no mundo. Generosos erros, mea-culpa, erros de quem corre o risco de procurar acertar. No seu ímpeto sai ele, mundo afora, que nem Deus e o diabo, a refazer os mundos. Veda, enquanto pode, com suas parcas mãos, as águas fluentes dos mundos coloniais que seriam. Fracassa afinal.
A Utopia Brasil II
Pe. Nelito Dornelas
Em memória à primeira missa celebrada aos 22 de abril de 1500, em Coroa Vermelha – Santa Cruz de Cabrália – BA, por Frei Henrique de Coimbra, relanço aqui, nesta segunda parte, o texto de Darcy Ribeiro escrito em 1980, por ocasião da visita do Papa São João Paulo II ao Brasil. Este escrito tornou-se o prefácio de O caminhar da Igreja com os oprimidos, de Leonardo Boff, com o objetivo de se estabelecer um diálogo com a classe média sobre a urgente necessidade de se fazer uma radical opção pelos pobres, em vista da superação de sua exclusão e miséria. Relido, 39 anos depois, encontramos nele uma surpreendente coincidência com a situação social que ainda teima em persistir e a se aprofundar em nosso país.
“Nóbrega, obreiro principal de Inácio de Loyola, tecnojesuíta sábio e terrível, planeja a colonização do Brasil, pedindo ao século a domesticação do gentio selvagem para que ele, depois, o refizesse pio e candoroso, para a glória de Deus e para lucros d’El Rei. (...) Engabelados na utopia de Deus nem suspeitam, temerários, das dificuldades da empresa ambiciosa de refazer o humano. Afundam todos no feio ofício de amansadores de índios para a morte ou o cativeiro. Depois, se dando conta, lamentarão por todos os seus anos de velhice envelhecida: com um anzol os converto, com dois eu os desconverto, porque não convertemos ninguém. E choram: jamais se cuidou que tanta gente, em tão pouco tempo, se gastara. E se gastou.
Mas a utopia iniciadora prossegue feroz por ínvios caminhos. No Paraguai de Montoya – hoje brasis – milagrosamente floresce a primeira República Comunista e Seráfica. Só floresce, porém, para ser destruída – flor que se corta pelo talo – nas mãos possessas dos mamelucos paulistas. (...)
Na Amazônia, Vieira – afoito Isaías com a boca queimada da palavra de Deus–sobe rios impossíveis, devassa selvas impensáveis. (...) Também fracassa. De tudo fica o caboclo destribalizado, perdido para si e para a indianidade: cativo. Sem passado recuperável, ele só presta para o futuro que há de construir, amanhã, na próxima cabanagem.
Destas concretas utopias brasileiras fica algo mais. Fica a lição mais incitadora que a Igreja jamais ouviu: a conclamação por uma Igreja dos humildes que ouse tanto quanto os profetas utópicos, mas que ouse com mais sabedoria. Esta incitação é que virou no ar, por séculos, como um desafio, esperando o Papa João.
A Igreja colonial dos sucessores daqueles rudes santos homens foi a Igreja da ortodoxia, do luxo, do ritual. Sem ilusões utópicas, nem inspirações pentecostais, se contentou em ser, se tanto, a consoladora dos aflitos; a grande resignadora dos pobres com a pobreza; a Igreja conivente com o mundo de César. Em lugar de se fazer a voz de um projeto alternativo, foi tão-só a sacralizadora da colonização escravista que regeu nosso processo de gestação. (...)
Ao longo dos anos, os ricos puseram nos pobres a culpa do atraso e da pobreza. Seriam as raças demasiadamente misturadas, seria o clima tropical, insofrível, seria a religião Católica alentadora da moleza, seria a descendência lusitana tacanha, seria, sobretudo, a vadiagem, a preguiça, a luxúria inatas dos mestiços. Hoje ninguém crê na verdade destas explicações justificatórias. Tornou-se, afinal, evidente para todos que os culpados de tanta fome e tanta dor somos nós mesmos, os privilegiados, os instruídos, os brancos, os refinados”.
Diante deste texto, que, para muitos, se parece duro e espinhoso, de difícil assimilação, deixo aqui um questionamento: o que é mais dramática, as palavras deste artigo ou a dura realidade de milhões de brasileiros, nossos irmãos e irmãs, que sobrevivem abaixo da linha da miséria, ganhando menos de um dólar por dia? O prior ainda é a PEC 6/2019, a Proposta de Emenda Constitucional encaminhada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, que pretende rasgar nossa Constituição Cidadã e anular os direitos de seguridade social, aprofundando ainda mais a miséria e a exclusão, acabando com a aposentadoria e os benefícios sociais.
Servem como alerta para nós as sábias palavras do Papa Francisco:
“Talvez, nós, que levamos uma vida sem grandes necessidades, não saibamos chorar. Certas realidades da vida só se veem com os olhos limpos pelas lágrimas. Convido cada um de vós a perguntar-se: Aprendi eu a chorar, quando vejo uma criança faminta, uma criança drogada pelas ruas, uma criança sem casa, uma criança abandonada, uma criança abusada, uma criança usada como escrava pela sociedade? Ou o meu choro não passa do pranto caprichoso de quem chora porque quer ter mais alguma coisa? Procurai aprender a chorar pelos jovens que estão pior do que vós. A misericórdia e a compaixão também se manifestam chorando. Se o pranto não vos vem, pede ao Senhor que vos conceda derramar lágrimas pelo sofrimento dos outros. Quando souberdes chorar, então sereis capaz de fazer algo, do fundo do coração, pelos outros”(Cristo Vivit 76).
A utopia Brasil III
Pe. Nelito Dornelas
Neste artigo, transcrevo a última parte do texto de Darcy Ribeiro escrito em 1980, por ocasião da visita do Papa São João Paulo II ao Brasil. Afirma o autor: A causa real de nosso atraso é, por um lado, a estreiteza de um projeto econômico classista muito lucrativo para os ricos, mas incapaz de gerar a prosperidade generalizável que o próprio capitalismo alcançou em tantas partes; é, por outro lado, a astúcia de uma classe dominante retrógrada que consome o povo na espoliação mais vil, como o impede pela repressão de estruturar-se politicamente para comandar o seu destino.
O assombroso é que, ao fim de cinco séculos, o mesmo projeto que nos fez para sermos a pobre humanidade que somos continua vigente, atuante, agora em bases mais cruéis. Ontem, faminto de mão-de-obra, desgastou 5 milhões de índios no cativeiro. Insaciável, importou mais 6 milhões de negros africanos, para queima-los na escravidão. Hoje, (...) somos sessenta milhões de brasileiros marginalizados, que só aspiram a um emprego estável de salário mínimo, e nem isso alcançam. Queixam-se. Lamentam-se. Não se revoltarão amanhã? Nada escapará à fúria do povo alçado, profetizam os que estão contentes com o Brasil tal qual ele é. (...) Nos trilhos em que querem nos manter, seremos, no terceiro milênio, outra vez, um povo de segunda: feio, atrasado e faminto, porque proibido de realizar suas potencialidades.
Onde está a Igreja nestes tempos de um novo genocídio? Onde está a Igreja da ousadia do pensamento utópico? Para onde foi o Príncipe que primeiro viu que o mundo era redondo e anteviu o Paraíso Terrenal do Espírito Santo? Onde se queda o púber Rei que se joga e aparece com toda a juventude portuguesa na batalha insensata, tão-só para nos dar a certeza de que este mundo é um encantado a desencantar: o sertão vai virar mar. Onde o fervor dos calvinistas cariocas? Onde o zelo utópico socialista dos Jesuítas heroicos, errando no furor de acertar.
Enganosas utopias de nossos desencontrados ancestrais ideológicos, em nome das quais fomos gestados. Vencidas todas, o que aqui floresceu jamais foi a utopia dos seus desvarios, foi o projeto colonial-escravista-latifundiário exportador que estruturou o Brasil de ontem e de hoje como um proletariado externo. Um povo inteiro que não existe para si, mas para ser gastado plantando o que não come, edificando a casa sempre alheia.
Conclamo aqui, agora, a todos os nossos profetas utópicos. Que venha Dom Henrique e El Rei Dom Sebastião. Que venham juntos Calvino e Loyola, Nóbrega e Vieira. Que venham também Tomás Morus, Erasmo, Campanella, Rousseau e Marx. Que venham Calabar, Tiradentes, Angelin e Antônio Conselheiro.(...) Tanto vão esforço utópico, vertido por tantos séculos aqui, sofridamente, precisa ser retomado. Agora para vencer! Venha a nós, Pastor das Gentes, para, juntos, com o coração incendiado da fé dos nossos falidos profetas utópicos, edificar, aqui e agora, o paraíso henricano. Singelo Paraíso em que todos comam todo dia; morem decentemente; estudem o primário completo; sejam socorridos e tratados nas dores maiores; tenham um emprego permanente, por humilde que seja; e não morram ao desamparo na velhice. Além destas grandes conquistas primaciais que hoje não estão nem visíveis no horizonte de esperanças mais longínquas da maioria dos brasileiros, temos outras aspirações.
Quiséramos poder pensar, falar e escrever sem sermos premiados nem punidos por nossas ideias. Também quiséramos, como todo povo civilizado, viver em liberdade, debaixo do império da lei, governado por autoridades eleitas, sem ameaças de golpes e de violências repressivas. Aspiramos, por igual, que cada brasileiro possa viver sua vida e buscar sua felicidade sem medo da polícia nem dos bandidos.
Ouça, Santo Padre, o clamor do povo que o aclama. Bendiga esta católica cristandade neolatina de ultramar, vestida de carnes morenas de negros e de índios, que é o Povo de Deus e só pede a utopia: o singelo paraíso terrenal do Espírito Santo.