A ESPIRITUALIDADE DO HUMOR

 

A espiritualidade do humor em tempos de pandemias e patologias

Pe. Nelito Dornelas

              O céu é o reinado do riso, assim afirma Dante Alighiere (1265-1321), na Divina Comédia. E o poeta nordestino Rodolfo Cavalcante (1959) compartilha da mesma ideia, ao descrever sobre A chegada de Lampião no Céu, quando Jesus sentencia: Seus pecados são tantos que nada posso fazer. Alma desta natureza aqui não pode viver. Pois dentro do paraíso é o reinado do riso, onde só existe prazer.

              O sorriso de Cristo para a teologia tradicional sempre foi um problema que gerou acirrada discussão. Mas para o povo simples isso nunca foi problema. As pastorinhas cantam diante do presépio na marcha da retirada: Vamos às nossas moradas, cheias de santa alegria, porque para nós sorriu-se Jesus, o filho de Maria. 

              Jesus sorriu até na cruz como descreve João Martins de Athayde, sobre a História de Dimas, o bom ladrão: Depois de vingar a morte de seu pai, Dimas retirou-se para as montanhas e juntou-se a Abdon e seus quatorze ladrões numa fortaleza. Depois da morte de Abdon, Dimas virou o chefe dos ladrões. Ele mandava respeitar os velhos e enterrar os mortos. 

              Num mesmo dia passaram por lá os soldados de Herodes e a Sagrada Família. Dimas respeitou a Maria e Jesus pelas barbas brancas de São José e serviu-lhes uma refeição. Depois de os ter servido com todo zelo e carinho, olhou para Maria e disse: Dá-me o teu pequenininho para que eu dê um beijo nas faces do teu filhinho! A terna Virgem chorava vendo tanta piedade naquele homem perdido pelo crime e a maldade. Pensava no seu filhinho, tanta ternura e bondade! 

              Dimas continua ladrão, mas despediu-se emocionado: Oh! menino formosíssimo entre toda geração! Se eu precisar algum dia ter a vossa proteção, por vossa misericórdia, tende de mim compaixão! Trinta e três anos depois Jesus foi crucificado, justamente o Bom Ladrão foi preso e sentenciado, para morrer com Jesus já estava profetizado. Estava chegado o tempo profetizado e preciso de Jesus recompensá-lo. Cheio de graça e riso respondeu: hoje entrarás comigo no Paraíso.

              Pensando nessa espiritualidade do riso, que o teólogo Harvey Cox faz um ensaio sobre uma possível teologia do palhaço, inspirado em São Paulo, quando este afirma que: O que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens (1Cor 1,25). E apresenta um Jesus palhaço, na personificação da festa e da fantasia, num tempo em que ambas estavam perdidas. Lembra que os primeiros cristãos consideravam-se loucos por causa do Reino de Deus. E muitas vezes tiveram que se defender de acusação de embriaguez, como o fez o apóstolo Pedro argumentando que eram apenas dez horas da manhã, como poderiam estar embriagados? (cf At 2, 14,15).

              O pintor francês Georges Rouault (1871-1958) pintou um Jesus palhaço explicitamente. Em 1966, um Jesus palhaço do filme protestante A Parábola (The Parable) chocou os visitantes da exposição Mundial de Nova Yorque. 

              Com o riso de Jesus, devolve-se à liturgia o aspecto lúdico da espiritualidade cristã, como expressa na obra Homo Ludens, o historiador Huizinga aproximando a religião e o jogo. Romano Guardini, no seu livro O Espírito da Liturgia (1930) escreveu um capítulo intitulado A liturgia como jogo. O cômico está enraizado na fé popular como atesta este bendito: Fui no céu jogar com Deus, na mesa da comunhão, Deus ganhou a minha alma e eu ganhei a salvação.

              Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) chama a São Francisco de Assis de um grande jogral de Deus. Para ele o santo e seus companheiros espirituais praticavam a ciência alegre do amor à dama pobreza. Eram irmãos menores na prática da verdadeira liberdade. São Francisco, bobo real do Rei do Paraíso, engolfava-se na pobreza com a mesma avidez de um homem que cavasse ouro.

              Para quebrar o rigor das regras, a sociedade medieval foi capaz de criar a figura do Bobo da corte, um personagem despretensiosamente crítico, para estar ao lado do rei, rodeado do máximo poder.

              A figura do palhaço voltou na cultura moderna, nos filmes de Charlie Chaplin, de Frederico Fellini e Mazzaroppi, na música do bailado Petrouchka de Igor Stravinski (1882-1971), na obra de Picasso (1881-1973). 

              Embora pareça uma heresia, o sentido do humor encontra-se na força da instituição religiosa, porque a ação do humor consiste em mostrar o tanto que as coisas terrestres e humanas ficam a quem das medidas de Deus.

              Harvey Cox afirma que: O Cristo palhaço nos leva a uma valorização lúdica do passado e a uma negação cômica do fantasma de um futuro sem saída. 

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