ACENDER UMA LUZ...
Acender uma luz em vez de amaldiçoar a escuridão
Pe. Nelito Dornelas
Certa vez Dom Helder Câmara comentava que uma das descobertas que muito lhe ajudaram a conter seu coração, diante da brutalidade da vida, foi a tomada de consciência de que o arco-íris nasce, exatamente, da desintegração da luz.
E lendo as obras de Frei Carlos Mesters sobre como o povo da Bíblia manteve a fidelidade à Aliança com Javé durante a dura experiência do cativeiro na cidade da babilônia, uma nova luz nos vem iluminar a caminhada das comunidades eclesiais de base e de tantos lutadores e lutadoras que mantêm acesas a tocha das virtudes teologais: fé, esperança e caridade e das virtudes cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza.
No cativeiro as comunidades perderam todo quadro de referências: templo, culto, terra, povo. Escuridão total! Qual a saída? Eles encontraram uma luz: não a luz do fim do túnel, mas a luz, que existia dentro do túnel. O que parecia a ausência de Deus era a sua presença. Escuridão luminosa. Três pontos caracterizam estas novas descobertas: uma nova experiência de Deus e da vida; uma nova consciência da missão e uma nova pastoral.
Nova experiência de Deus. A nova leitura da natureza: "O sol vai nascer amanhã!" A redescoberta do Amor Eterno: "Eu amei você com amor eterno. Por isso conservo meu amor por você" (Jr 30,1-3). A nova imagem de Deus, como Deus de família: Pai, Mãe, Marido, Irmão mais velho. Como este novo olhar começam a reler e repensar todas as coisas: a história, os fatos da vida, e a natureza.
Nova consciência da missão. Redescobrem sua missão: ser um povo servo, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a bondade de Deus, difundir a justiça, não desanimar nunca e, assim, ser a "Luz das Nações" (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). Os quatro cânticos do Servo são uma cartilha para ajudar o povo a descobrir e a assumir a sua missão. O Servo é o próprio povo do cativeiro. Jesus escolheu o Servo para apresentar-se ao povo de Nazaré (Lc 4,18). Ele disse: “Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mt 20,28). Aprendeu de sua Mãe que disse: "Eis aqui a serva do Senhor!" (Lc 1,38).
Uma nova Pastoral. A gratuidade da presença amorosa e universal de Deus torna-se a fonte de uma nova pastoral que transparece nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías.
Ternura. Para a pessoa machucada e triste, na solidão do cativeiro, não bastam imposições e preceitos. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do coração, acolhendo-a com muita ternura e bondade: “Consolai! Consolai o meu povo!” (Is 40,1). Há muitas expressões e imagens de ternura espalhadas pelos capítulos 40 a 66 de Isaías: Is 40,1-2ª; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; etc. Eis um exemplo: “Tu és o meu servo! Eu te escolhi, não te rejeitei. Não temas, porque eu estou contigo. Não fique apavorado, pois eu sou o teu Deus. Eu te fortaleço, sim, eu te ajudo, eu te sustento com a minha direita justiceira! Não temas! Sou eu que te ajudo!
Não temas, vermezinho de Jacó, meu bichinho de Israel! Eu mesmo te ajudarei. Oráculo de Javé, teu redentor é o Santo de Israel!” (Is 41,9-10.13-14; cf Is 54,7-8).
Diálogo. Nos capítulos 40 a 66, transparece uma atitude de escuta e diálogo. Eles conversam, fazem perguntas, questionam, criticam, levam o povo a refletir sobre os fatos (cf Is 40,12-14.21.25-27; etc). Ensinam dialogando em pé de igualdade com o povo: “O Senhor me deu uma língua de discípulo para que eu saiba trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim, desperta meu ouvido, para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4). Um discípulo não impõe suas ideias, mas sabe ensinar escutando e aprendendo com os outros. Eis um exemplo: “Por que dizes tu, Jacó, e por que afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a Javé; meu direito passa despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não ouviste isto? Javé é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28). Por este seu jeito de conviver e de tratar com o povo, eles não só falam sobre Deus, mas também o revelam. Eles comunicam algo daquilo que eles mesmos vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e de diálogo.
Reunião. É neste período se começa a insistir de novo na observância da lei do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf Gen 2,2-3). Era para que o povo tivesse ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e animar-se mutuamente. Faziam reunião de noite e perguntavam: “Levantem os olhos para o céu e observem: Quem criou tudo isso? É Aquele que organiza e põe em marcha o exército das estrelas, chamando cada uma pelo nome. Tão grande é o seu poder e tão firme a sua força, que nenhuma delas deixa de se apresentar. Jacó, por que você anda falando, e você, Israel, por que anda dizendo: “Javé desconhece o meu caminho e o meu Deus ignora a minha causa?” (Is 40,26-27). Nestas reuniões eles refrescavam a memória (Is 43,26; 46,9), contavam as histórias de Noé, de Abraão e Sara, da Criação, lembravam o êxodo (Is 43,16-17), apontavam os fatos da política e perguntavam: “Quem é que faz tudo isto?" (Is 41,2). A resposta era sempre a mesma: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!". Por trás de tudo começam a reaparecer os traços do rosto de Javé, o Deus do povo. A natureza, a história e a política deixam de ser estranhos e hostis ao povo e tornam-se aliados dos pobres na sua caminhada como Servo de Deus.
Consciência crítica. Foi necessária muita paciência para o povo se reanimar. Eles eram como o profeta Elias deitado debaixo da árvore querendo morrer (1Rs 19,4).
Este desânimo tinha duas causas: uma externa que, de fora, pesava sobre eles: a destruição de Jerusalém, o exílio; a outra interna que, por dentro esvaziava o coração: a falta de visão e de fé. Deus parecia ter perdido o controle da situação. Nabucodonosor parecia ser o dono de tudo. Isaías ataca as duas causas: desfaz o peso da opressão e enche o vazio do coração. Para desfazer o peso da opressão ele usa o bom senso e faz uma análise crítica da realidade. Desmascara o poder que oprime e a ideologia dominante que engana. Para encher o vazio do coração Isaías ajuda o povo a perceber os sinais da presença amorosa de Javé (Is 54,7-8; 55,8-11; 41,1-5; 44,27-28; 45,1-7). Faz saber que Deus faz opção pelos pobres: "Eu estou contigo!" (Is 41,10). “Troco tudo por ti!” (Is 43,4). É lá que Ele deve ser procurado (Is 55,6), e é de lá que Ele quer irradiar sobre o mundo como "Luz dos Povos" (Is 42,6). A face de Deus reaparece na vida. O povo, animado por esta Boa Notícia, desperta (Is 51,9.17; 52,1), se põe de pé (Is 60,1), começa a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir (Is 48,20).
Diante desta análise, trazendo este contexto bíblico pra nossa realidade eclesial e social contemporâneas, soam com ares de profecia as palavras do Papa Francisco na Evangelii Gaudium, 85 e 86.
Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias fraquezas, há que seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar o que disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal. O mau espírito da derrota é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio, resultado de uma desconfiança ansiosa e egocêntrica. Não deixemos que nos roubem a esperança!