A TORRE DE BABEL

 

A Torre de Babel - 1

Pe Nelito Dornelas

 

O biblista Miltom Schwantes vê na Torre de Babel não um zigurate, descartando, pois, a possibilidade de sua identificação com a Babilônia, mas uma fortificação militar.

Seu pensamento parte do princípio de que o militarismo foi criado para defender as posses e propriedades dos ricos e poderosos habitantes das cidades, contra os possíveis ataques dos camponeses pobres, fracos e indefesos. Mas olhando a torre de forma simbólica, considerando que a pretensão dos citadinos é penetrar no céu, ter uma ambição absoluta, outro biblista, Ivo Storniolo vê nesta narrativa a existência de quatro torres abrigando os quatro centros da cidade, a saber, a torre da economia, a torre da política, a torre da hegemonia social e a torre da ideologia. Curiosamente, essas quatro torres podem ser identificadas com os edifícios que mais se sobressaem nas cidades.

“Uma torre cujo ápice penetre nos céus” é a pretensão das forças que dominam a cidade. Chegar ao céu é chegar até Deus e ocupar o seu lugar, é tornar-se absoluto, pois quem pode lutar contra o próprio “deus”? Daí se domina tudo, sem qualquer obstáculo. Onipotência e soberania. De quem? Daqueles que dominam a economia, a política, o privilégio social e a ideologia. Quatro torres altíssimas. Vejamos de perto cada uma delas.

A torre da economia. Quem tem muito acaba ganhando mais, e quem tem pouco acaba perdendo o que tem. É assim que se constrói a torre da economia, uma das torres mais altas da cidade. De fato, as maiores construções das cidades são as dedicadas ao sistema financeiro. Aí estão concentrados os bens da vida, transformados em dinheiro. Esses bens, no contexto da narrativa bíblica, não foram produzidos pela cidade, mas pelo campo.

Uma das pretensões da cidade é concentrar e acumular os bens que ela não produziu. Quantas vidas humanas não serviram de tijolo para a sua construção? Tijolos cozidos no forno do sofrimento, da fome, da dor, no sangue que serviu de cimento para que a torre ficasse de pé. Quem é o engenheiro? Quem é que ganha com a morte e o sofrimento do outro?

Papa Francisco, comentando sobre esta torre da economia, reporta-se a um antigo rabino em cuja explicação encontrou as seguintes informações: que os tijolos utilizados para a construção da Torre de Babel eram muito especiais, produzidos com uma argila própria, secados em estufas apropriadas e enrolados em betume. Cada tijolo custava uma fortuna. Cada tijolo era conduzido cuidadosamente pelas mãos dos operários até o topo da obra. Caso acontecesse de um destes tijolos cair e se quebrar, era um ‘deus nos acuda!’ havia muita punição e falatório. Mas se um operário se acidentasse e até mesmo morresse durante a construção era como se nada houvesse acontecido.

Como hoje. Um ponto na queda nas bolsas de valores é motivo de plantão jornalístico, mas a morte de milhões de seres humanos, pelas mais variadas razões, sobretudo pelos crimes devido à concentração econômica, não nos comove.

Muito oportuna a convocação feita Papa Francisco para o encontro denominado “A economia de Francisco”, nos dias 26 a 28 de março de 2020, em Assis, a cidade italiana de São Francisco, com mais de 2 mil economistas e empreendedores de 115 países, todos com menos de 35 anos, para pensar e propor uma outra economia possível, que seja capaz de superar esta economia da Torre de Babel, pois “esta economia mata!”

O Brasil terá a segunda maior delegação, com a participação de 30 novos economistas, entre os quais está o neto de minha amiga Dona Izinha, de Virgolândia-MG, Marcos Herkenhoff, filho dos meus amigos Pedro Paulo e Joana D’Arc, de Vitória- ES. A agenda prevê debates sobre trabalho e cuidado, gestão e dom, finança e humanidade, agricultura e justiça, energia e pobreza, lucro e vocação, políticas para a felicidade, desigualdade social, negócios e paz, economia e mulher, empresas em transição, vida e estilos de vida, e, finalmente, economia solidária.

Afirma o Papa Francisco que não há razão para haver tanta miséria. Precisamos construir novos caminhos para a economia que promovam a vida e não a morte, a inclusão e não a exclusão, a humanização e o cuidado com a Criação. E afirma a necessidade de corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.

 

A Torre de Babel II

Pe. Nelito Dornelas

A palavra Babel significa confundir. Analisando detalhadamente o texto de Gênesis 11, 1-9 encontramos não apenas uma torre, mas quatro torres em Babel, a saber, a torre econômica, a torre da política, a torre social e a torre da ideologia.

No artigo anterior conhecemos alguns aspectos da primeira torre e agora vamos observar a natureza das outras três. 

A torre da política funciona mais ou menos assim: quem tem mais pode mais, quem tem pouco ou nada fica fora da jogada. É, muitas vezes, o poder a serviço do ter. E aqui começa a construção da segunda torre da cidade de Babel. Os que possuem bastante e querem possuir ainda mais tratam de defender os seus interesses que é ter sempre mais. Ter é poder, e poder é uma sensação indizível de controlar tudo. Maquiavel já alertava que o poder, muitas vezes, corrompe e que o poder absoluto corrompe absolutamente. É ser deus sem ser Deus, ou pode até confundir tudo, e pensar que se é o próprio Deus. Porque o poder é a possibilidade de dispor de tudo e todos como se as pessoas fossem coisas sem destino e sem vontade própria. Uma embriaguez sem fim.

Pretendendo organizar o conflito de interesses, a função política acaba, muitas vezes, tornando-se o poder que delimita a esfera pessoal de cada um. Não é preciso conhecer o nome de todos para dominá-los, basta que se estabeleça a função de cada um e o limite do seu papel social, na medida de sua possibilidade aquisitiva, e o resto se faz por si só. O sistema de exclusão se auto protege.

A torre social parte da premissa de que a sociedade se organiza segundo um princípio muito simples: quem tem mais vale mais e quem tem mais poder tem mais privilégios. As classes sociais acabam criando castas e dificultando a cultura do encontro e do diálogo entre as diferentes classes. Aqui merece uma intervenção de Patativa de Assaré que se referiu às classes sociais classificando-as em céu (classe rica), purgatório (classe média) e inferno (pobres). 

Na torre social as paredes são íngremes e no topo o espaço é pequeno. Os que não estão lá só lhes resta tentar em vão à vida inteira subir pelas paredes escorregadias, condenados a realizar o mito de Sísifo, sem jamais alcançar resultado algum. 

A torre social é feita de pessoas, umas sobre as outras. Na torre social há muita surpresa, nem sempre agradável. Sua base é movediça. É construída sobre a areia.

A torre da ideologia nos faz voltar aos judaítas que identificaram esse texto com Babilônia e o seu Zigurate, a torre sagrada. Fazendo isso, eles nos deram preciosa identificação: a torre da ideologia pode ser a torre da religião, ou, se quisermos, as igrejas e templos que, de um lado, pretendem comunicar a vontade de Deus, mas, de outro, podem estar simplesmente falando a linguagem única da cidade, cimentando os projetos puramente humanos com sua suposta vontade divina.

Mas a torre da ideologia pode ser também as torres da informação e da comunicação, quando estas procuram “vender” uma única ideia, um pensamento único sobre a cidade de Babel. E de roldão, vai o resto, uma economia tendo o lucro como seu fim único, uma política que busque somente o poder e o arranjo social excludente e as sofisticadas tecnologias que primam pela eficiência.

Religião e comunicação unidas podem fazer o milagre da fala única da cidade de Babel. Elas podem levar o mundo todo a pensar e a agir da mesma forma e, sem discutir, construir juntas a torre da cidade, a pretensão de onipotência que sobe ao céu, servindo a alguns, os que estão no topo da parede íngreme e, servindo-se de todos os outros com a maior lisura aparente.

O projeto de construírem as Torres de Babel é um projeto internacional. A torre tem a pretensão de hegemonia absoluta na economia, na política, na forma social e na ideologia sobre o mundo inteiro. E quando isso se torna religioso, quando adquire um caráter sagrado, ninguém pode desmontá-lo. E a coisa torna-se complicada mesmo. Não dá para repetir a ingenuidade de Dom Quixote que pretendia vencer os moinhos de vento com uma espada e um cavalo.

Felizmente o texto não termina aqui. Temos os versículos 5-9 que trazem uma resposta. Resposta de Deus, captada pelos camponeses em luta contra a hegemonia da cidade que lhes roubava os produtos, o trabalho, o sangue e a vida. Deus não se deixa enganar com o projeto das torres e desce para verificar de perto o que se passa dentro delas.

 

A Torre de Babel e a reação de Deus

Pe. Nelito Dornelas

 

A resposta de Deus à tentativa de construção da Torre de Babel envolve uma grande ironia: enquanto a cidade e a torre sobem, pretendendo alcançar o céu, Deus desce para ver o que esses homens estão fazendo. Isso já é um julgamento. Por mais que os homens façam, jamais conseguirão chegar a Deus. Se Deus não vier ao seu encontro, ele nunca se encontrará com o absoluto verdadeiro. Não adianta querermos conquistar a transcendência. Se a conquistarmos, ela será falsa, exatamente o contrário do que Deus é. A transcendência se dá, e o máximo que podemos fazer é estarmos abertos e receptivos a ela.

Gênesis 11, 5 contém o mistério central revelado na bíblia. Os homens querem subir até Deus e, se possível, ocupar o lugar dele. Deus, ao contrário, quer descer, e desce ao nível da humanidade, e ocupa o último lugar entre os homens (cf Fl 2,6-11). Enquanto os homens procuram, a todo custo, se desencarnar, Deus se encarna. Essa diferença de direção perseguida pelo homem é muito perigosa, pois ele pode perder justamente o que procura. E depois disso o que lhe resta senão o nada embaraçado na arrogância e no orgulho.

Pode ter limites a ação do ser humano?

A fala de Deus no versículo sexto é elucidativa: se não se coloca um fim no mistério da Torre de Babel, ela se espalhará como um vírus por toda parte. Falar a mesma língua (ideologia) e formar um só povo (arranjo social), embora com muitas diferenças, é um perigo. Por que? Porque quando todos colaboram com o projeto faraônico da hegemonia econômica, política, social e ideológica, a dominação não tem mais limites. Então alguns homens se tornarão divinos (falsos deuses) e, todos os demais deverão servi-los com as ofertas de seus sacrifícios para satisfazer seus caprichos. 

A constatação de Deus é uma tomada de consciência que se opera na cabeça dos homens. Ou se resiste ao veneno, ou fica-se envenenado para sempre. Os camponeses daquele tempo descobriram que o projeto de Deus não era o da cidade com suas torres. Era um projeto de vida que passava exatamente pelas mãos dos camponeses em forma de alimento. Ora, a cidade não produz vida, pois não produz alimento. Pelo contrário, ela o consome. Consequentemente, a cidade é consumidora da vida. A única produção da cidade é a idolatria, os falsos deuses que não alimentam ninguém, mas servem-se das pessoas, alimentando-se delas. 

O Deus verdadeiro, que gera a vida, vem do campo, enquanto que o deus da cidade é um ídolo que devora a vida e fabrica a morte. Esse deus tem que ser destruído a tempo antes que seu veneno se espalhe e contagie a todos, em escala mundial. 

 A ação de Deus e dos camponeses começa pela operação desmonte da ideologia. Não se oferece mais a argamassa para a construção da torre.

Deve-se estar atento à linguagem, à forma de comunicação dos construtores da torre para perceber as suas reais intenções e desmascará-los.

Uma saída

A cidade tem uma origem bela, inscrita no mais profundo do nosso ser: como seres relativos, dependentes de relações, precisamos dos outros, dos que eles são, do que eles produzem, assim como os outros precisam do que somos e produzimos. Mas isso traz uma verdade da qual não podemos fugir: precisamos ser e precisamos produzir, para ter o que trocar e partilhar com os outros. Consumir apenas é ser sanguessuga. Dar apenas é ser explorado. Primeiro é preciso justiça. Vida é troca, relação, partilha. Quando isso acontece, a vida se torna festa, alegria.

A estarmos juntos à base da dominação é melhor que nos dispersemos. A dispersão tem um lado estrutural, que atinge a economia, a política e a estruturação social. É um não à acumulação, ao cerceamento à liberdade e à estratificação social. Deus desfaz os projetos dos homens ambiciosos e, em sua sabedoria nos orienta para que cada um de nós chegue à plenitude da vida e da liberdade, para que não sejamos roubados naquilo que somos e temos.

 

Torre de Babel e as lições da história em tempos de pandemia

Pe. Nelito Dornelas

 

Estes tempos de coronavirus, o COVID-19, tempo de isolamento social, uma espécie de dispersão social, mais uma vez, vale a pena, revisitar as páginas da Bíblia em Gênesis 11, 1-9 no relato sobre a Torre de Babel.

Uma das lições de Babel é sobre a importância da diversidade. Geralmente pensamos que somos todos iguais e quando nos deparamos com o diferente nos assustamos. O bom mesmo é sermos diferentes, termos pensamentos e ações diferentes e podermos estabelecer uma relação justa de troca entre o que somos e o que temos com o diferente. O mesmo vale para a verdade. Há um ditado oriental que afirma existir pelo menos três verdades, a minha, a do outro e a verdade verdadeira. Somente em um diálogo sincero pode-se chegar a essa verdade verdadeira.

Gênesis 11,1-9 encontra-se na Bíblia exatamente antes da história da constituição do povo de Deus, que começa com Abraão saindo de Ur, uma grande cidade, para ir a uma terra desconhecida, que Deus iria lhe mostrar. E Abraão aceitou o desafio, colocando-se a caminho em busca de si mesmo e da terra, confiando apenas numa promessa. 

O mesmo convite é dirigido também a nós no hoje da história.  Deus também nos pede para deixar e desmontar a cidade em que vivemos, para nos dirigirmos a outra cidade. É a dispersão de Gênesis 11,9. E aí, uma vez dispersos que aprendamos a nos encontrar e a compartilhar com o outro nossos desejos mais secretos. Que construamos uma nova cidade, não mais com uma torre que se eleva até o céu, mas uma mesa em que todos possam se assentar, comer, beber, festejar e se alegrar, mantendo sua própria identidade, falando sua língua, sem ter que obedecer a um único código de linguagem, apenas protegendo e respeitando a vida, a maior bênção da qual cada qual é portador. 

 

O sonho de Deus é uma nova cidade (Ap 21,1-22,5)

Os últimos relatos da Bíblia nos apresentam também uma grande cidade, muito diferente da Babel.  Enquanto Babel queria subir até o céu, a Nova Jerusalém desce do céu para a terra, ao encontro dos seres humanos e de todas as criaturas. Não são os seres humanos que constroem a cidade de seus desejos e de seus sonhos, mas é o próprio Deus. E Ele não cobra nada por esta nova edificação. Ele a dá, apenas, em troca de nossa confiança em sua assinatura como o engenheiro e arquiteto desse projeto. Claro que Ele não dispensa nossa mão de obra como pedreiros, ajudantes e obreiros nesta reconstrução da cidade, agora fundamentado na liberdade e na proteção à vida de todos os seres e de todas as criaturas.

A Jerusalém Celeste do Apocalipse, curiosamente não possui nenhuma torre. É apenas uma praça. E nela não há nenhum banco, nenhum edifício público, nem igrejas ou templos, nem torre de rádio, de televisão, de telefonia ou internet. Nada. Apenas o Trono de Deus, o Deus verdadeiro, junto com Jesus, o Homem verdadeiro. E desse trono de Deus e do Homem verdadeiro nasce o rio de água viva, a própria Vida, fazendo as árvores da Vida estarem sempre vivas, dando frutos o ano inteiro, e para todos.

Praça da Vida, lugar de encontro e de troca, do ser e dos bens que recebemos gratuitamente de Deus, e que, agora, podemos gratuitamente partilhar com todos. Acabou-se a política, a polícia, o comércio e a tapeação. Esta é a cidade dos desejos de Deus e de Jesus, o Homem verdadeiro, na qual nos sentimos contemplados em nossos mais profundos anseios.

Desde o capítulo 12 de Gênesis até o capítulo 22 do Apocalipse, a Bíblia registra a penosa caminhada do povo de Deus aprendendo a construir uma cidade que inclua a Árvore da Vida dentro da Praça, o Campo dentro da Cidade, num encontro em que a liberdade e a vida sejam, de fato, para todos. Nos relatos bíblicos estão o antídoto, o remédio para combater todos os vírus da morte, disseminando um outro vírus, o vírus da vida.  

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