FÉ CRISTÃ: NÚCLEO CENTRAL
O núcleo central da fé cristã 1
Pe. Nelito Dornelas
Considerando que a fé cristã fundamenta-se na encarnação de Jesus Cristo, experiência única e concreta na história da humanidade e não numa doutrina abstrata, o seu núcleo central envolve a totalidade da vida de Jesus, desde sua encarnação, até sua ascensão aos céus, passando por sua morte e ressurreição. Assim anunciava São João Paulo II, citando São Paulo VI, no Discurso Inaugural de Puebla:
“Não há evangelização verdadeira, enquanto não se anunciar o nome, a vida, as promessas, o reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus” (cf. 1.2).
Visitar a pessoa de Jesus implica em um constante aprendizado. Para acolher este mistério temos que partir de sua própria vida diante de Deus e da humanidade. Trata-se de compreender Jesus Cristo a partir dele mesmo e do testemunho da Palavra de Deus a seu respeito.
Neste aprendizado surgem dois níveis distintos:
1- O nível histórico-factual, onde se situa o fato bruto, acontecido e documentável pelo testemunho bíblico e de relatos históricos. Podemos saber pela história que Jesus era judeu, que viveu entre os anos 7 a.C a 30 d.C.
2- O nível da significação do evento Jesus de Nazaré. Este nível é o da sua repercussão e influência na consciência histórica da humanidade, refletindo o sentido para a vida e o seu destino. É o nível em que se percebe a relação entre o fato histórico e quem o interpreta. Descobrimos que é Deus mesmo quem dá sentido ao acontecimento Jesus Cristo e, que nós o acolhemos em nossa vida, como sendo a revelação definitiva de Deus para nós. Por isso o Jesus histórico, como revelação de Deus, torna-se a referência máxima da fé e de todo o seguimento à sua pessoa e critério absoluto para a própria instituição eclesial.
A fé cristã sofre a permanente tentação do reducionismo e do espiritualismo. Enquanto o primeiro tenta reduzir o princípio da fé à dimensão puramente humana e histórica, o segundo desumaniza a fé e a desliga da história e do compromisso sócio transformador.
Quando pensamos e vivemos a fé, só podemos fazer isso na mediação de uma prática pessoal e social, encarnada em nossa própria história, transcendendo-a, elevando-a, para além dos nossos estreitos horizontes, abrindo-nos à plenitude da vida e à eternidade.
De fato, como a fé está no nível da significação, ela não possui existência própria, ela se alimenta do acontecimento da encarnação de Jesus, que é seu permanente suporte e critério de juízo crítico de cada contexto histórico.
Somente a significação da fé que possui suporte na vida de Jesus torna-se história e faz-se história, continuando a encarnação do verbo. Como afirmava Santo Agostinho: Deus que criou o gênero humano sem sua participação, não o salvará sem sua colaboração.
A fé continua sendo o ato mais sublime e livre do ser humano que se dispõe, livremente, a estabelecer uma aventura existencial, tendo Jesus de Nazaré como parceiro principal e absoluto.
A fé cristã e a construção do discurso sobre a fé - II
Pe. Nelito Dornelas
Quando queremos aprofundar sobre a fé, precisamos, primeiramente refletir sobre a articulação do discurso da fé, retornar aos seus fundamentos, conhecer o contexto sócio cultural, sua prática e a variedade de expressões que ela comporta.
Para nos ajudar nesta reflexão, tomemos como analogia, a visão de uma paisagem. Ao contemplá-la, não enxergamos nosso olho que a vê. Para ver nosso olho é preciso realizar uma segunda operação que envolve a percepção da paisagem e, ao mesmo tempo, tomar consciência das condições em que ela é percebida por nós através do olho. Caso haja alguma falha na vista ou se há entraves, a visão fica prejudicada, cabendo então o recurso a instrumentos ou lentes para melhorar a visão.
Quando falamos da fé cristã estamos na mesma condição. Percebemos a paisagem da nossa fé, enquanto ela se articula em nossa vida real em sociedade. De imediato, podemos não captar logo os condicionamentos históricos dessa percepção, pois nossa vista pode estar defeituosa e não o sabemos.
Para conhecer nossa fé, o primeiro elemento a ser analisado são as condições objetivas e subjetivas dentro das quais ela é vivida e percebida, interpretada e articulada.
Justamente para esclarecer essa questão é que precisamos conhecer os conceitos de horizonte e de espaço cultural no qual estamos mergulhados, para saber quais são as perguntas e questionamentos feitos sobre a fé e quais as respostas mais comuns que lhes são dadas.
Num segundo momento há que se colocar a questão da autenticidade e dos critérios das respostas dadas, quem as fornece e com quais interesses. Pergunta-se também sobre o lugar social de quem interpreta a fé e que visão ele possui de Jesus Cristo, da Igreja e dos mecanismos de funcionamento da sociedade.
O que é inegociável em toda e qualquer interpretação da fé é a identificação, nesta resposta, do núcleo central da fé cristã, que deve ser sempre o Jesus histórico e o Cristo da fé, em conformidade com os relatos dos evangelhos.
A articulação da fé não é um mero processo interior ao nosso intelecto que conhece o objeto da fé e o trabalha. Esse processo acontece dentro de um horizonte histórico, dentro de um quadro de referência sócio cultural que nos é dado. Esse quadro de referência não é mero produto individual. Ele é uma realidade social que nos é dada através da participação no processo de produção dos bens materiais e simbólicos de uma sociedade.
É a própria vida cultural do ser humano que está em jogo quando ele trabalha e descobre o sentido humano de seu trabalho, de sua vida, de suas atividades, de suas relações com os outros, com o mundo e com Deus.
A rede de relações e o processo de produção desses bens são armazenados na própria visão do mundo que construímos. Com o tempo produzimos uma rotina na qual organizamos os mais variados objetos de nossa vida. Estruturamos assim socialmente o próprio modelo de pensar e interpretar a realidade que constitui a teia de relações que dão sentido à nossa vida. Criamos nosso imaginário social e cultural.
É dentro desse quadro de referência existencial que nascem as perguntas da vida, que desembocam nas questões de fé. Elas chegam direcionadas por uma prática histórica já articulada e torna-se a mediação dessa expressão da fé. A fé acaba sendo mediada, um produto desta vivência sócio cultural.
Aprofundando um pouco mais podemos nos perguntar: de que é feito esse modelo de pensar? Antes de tudo é preciso dizer que ele não é formado por ideias abstratas, como que recebidas do além. Não há nada no nosso intelecto que antes não tenha passado pela experiência que vem do nosso trato com o mundo real e das coisas, já dizia Aristóteles: nada há no intelecto que antes não tenha passado pelo crivo dos sentidos.
Esse modelo de pensar é construído com a matéria prima específica dos interesses reais que nascem no processo histórico do qual participamos. À medida em que vivemos, instituímos relações constantes e comportamentos padrões que condicionam a nossa prática de vida.
Quando falamos de nossa resposta de fé não queremos escapar a essa construção social da realidade e do nosso conhecimento. Entendemos que ela é dada no contexto dessa prática de vida. Em nossa resposta de fé estão incluídas as mesmas perguntas que nascem dos interesses de nossa vida e a moldam continuamente.
Qual é a razão dessa colocação teórica sobre a fé? Sua razão e importância consistem em fazer-nos descobrir o quadro de referência ou a moldura histórica dentro da qual nossa fé é vivida e interpretada. Faz-nos perceber logo de início que a imagem que fazemos de Jesus é condicionada pela vida das pessoas em sociedade. Só para não ficarmos numa afirmação distante, basta ver a evolução da imagem de Deus na Bíblia. Enquanto Israel vagava pelo deserto, Javé era visto como um Deus nômade. Quando o povo de Israel tornou-se sedentário, Javé passa a ser interpretado como um agricultor e o povo então troca a tenda do deserto pelo templo de Jerusalém.
E hoje, com que imaginário social construímos nosso discurso sobre a fé?
parte3
Pe. Nelito Dornelas
Há uma questão fundamental a ser colocada hoje: diante de tantas interpretações de Jesus Cristo, é possível ter uma que seja realmente autêntica, a forma mais correta de crer em Jesus Cristo? Caso seja possível encontrar essa interpretação autêntica, qual seria o critério orientador de nossa procura da fé?
Seria definir os vários reguladores de nossa fé estabelecendo uma hierarquia entre eles, a partir do que é mais essencial. Essa questão é fundamental, sobretudo, considerando a situação atual da Igreja Católica dentro da qual existem hoje atitudes conflitivas, que avançam seus olhares conforme suas respectivas práticas e suas opções ideológicas.
Como estabelecer quem tem razão e mesmo encontrar quem dá as cartas? É possível estabelecer de uma vez por todas qual é a identidade católica para sempre ou ela vai se explicitando em cada conjuntura histórica, conforme os tempos?
Descobre-se que, para qualquer lado que se volte, a questão está sujeita à manipulação e à visão subjetiva. Esse critério onde estaria? Nas Igrejas? Na mesma história humana? Em sua cultura “cristã”? No próprio Jesus Cristo?
Para trazer alguma luz sobre a questão, propomos três proposições:
1- A comunidade cristã, enquanto vive e celebra sua fé em Jesus Cristo, é o primeiro e o mais próximo regulador de nossa fé. O lugar imediato no qual aprendemos quem é Jesus Cristo é a comunidade cristã, no testemunho de sua vida e de sua fé. Mas a Igreja não é o fundamento de si mesma. Por isso ela não se explica a si mesma nem a sua fé. O que a Igreja explicita em relação a Jesus Cristo já é uma leitura recebida. A Igreja é “sacramento”, sinal e instrumento do Reino de Deus, de Jesus Cristo. Essa análise não poderá existir sem um fato a ser interpretado. O dogma cristão já é ele mesmo olhar que pressupõe o fato de uma existência histórica, a de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado “por nossa salvação”, existência essa a ser compreendida na sua totalidade humano-divina.
2- A totalidade humano-divina de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, Senhor da história, como o regulador definitivo e nunca ultrapassado e ultrapassável da fé. O significado universal de Jesus Cristo, o que Jesus é para nós ultrapassa, transcende as fronteiras de qualquer objetivação histórica da fé e as próprias fronteiras das Igrejas, da instituição eclesial, qualquer que ela seja. Ora, se a Igreja interpreta quem é Jesus Cristo, mas não tem o monopólio desta interpretação, isso significa que Jesus Cristo é maior do que a Igreja. Na verdade, a visão de Jesus Cristo não pode ser contida e controlada simplesmente pelas confissões cristãs. O fenômeno religioso cristão que assistimos hoje nos mostra que é cada vez mais difícil determinar uma “ortodoxia” e deve-se apelar mais para uma práxis, uma história, verificando o que é realmente específico cristão.
3- A interpretação autêntica de Jesus Cristo liga-se a um acontecimento historicamente datável e humanamente verificável que é sua prática histórica e seu testemunho da proximidade de Deus. Se a verdadeira imagem de Jesus não pode ser simplesmente baseada na pura visão da Igreja por ela mesma, mas não pode também basear-se apenas numa mera prática histórica dos cristãos e das cristãs, por melhor que seja, por mais humanizadora que se nos apresente, então onde nossa fé vai fundamentar-se? Dentro da tradição eclesial, nossa interpretação da fé fundamenta-se num fato objetivo, histórico, humano, verificável: Jesus Cristo e seu testemunho da proximidade de Deus pela sua prática de vida, reconhecida pela ressurreição como o Verbo Encarnado, o Filho de Deus. Trata-se de discernir a pessoa, a vida, a missão e o destino de Jesus de Nazaré. Falamos aqui de fundamento da análise da fé e não diretamente da fé. O fundamento da fé é a Palavra revelada de Deus, é Deus mesmo enquanto se dá a conhecer, para nós cristãos, em Jesus Cristo.
A importância dessa questão está no fato de que, se cada grupo ou cada Igreja compreendesse Jesus de seu jeito, no horizonte de suas práticas sociais e de seus interesses ideológicos, acabar-se-ia perdendo de vista o essencial: o acontecimento de Jesus Cristo Libertador. Isso significa que é preciso buscar sempre o ponto de partida, que não pertence a ninguém, a nenhum grupo particular, mas do qual todos podem falar, do mesmo e idêntico Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus Pai-Mãe. Isso é um convite para deixar de lado férteis imaginações de um Jesus angelical, romântico e espiritualista, para abraçarmos a Jesus, a partir de sua encarnação, com cheiro de terra, de carne e do hálito divino em plenitude, em sua aproximação realmente histórica e humana.