ATOS: ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO
Espiritualidade do cuidado a partir dos Atos dos Apóstolos
Pe. Nelito Dornelas
Vivemos no século XXI os resultados fascinantes, inspiradores e, às vezes, desastrosos construídos nos século XX. Diante deste panorama somos desafiados a fazer uma leitura teológica da história, assim como o autor do livro dos Atos dos Apóstolos, supostamente o médico e evangelista Lucas, o fez do primeiro século da era cristã.
Para darmos conta dessa leitura, faremos um paralelo entre alguns acontecimentos ocorridos no século XX e a resposta teológica de Lucas no século I, conforme descrita em Atos dos apóstolos.
· Separamos o átomo e entramos no mistério da física quântica;
· lançamos na atmosfera aviões e cápsulas espaciais;
· caminhamos na lua e já enviamos satélites a outros planetas;
· conseguimos fotografar os planetas;
· controlamos as câmeras a partir de milhões de quilômetros de distância;
· elaboramos a teoria geral da relatividade e comprovamos que o mundo não é mecanicista como o tinham pensado Francis Bacon e Newton;
· inventamos os transmissores e conseguimos colocar milhões deles juntos em microchips;
· descobrimos a penicilina e a estrutura do DNA;
· desenvolvemos o cinema, a televisão e os mais modernos meios de comunicação como a internet, o e-mail, o whatsapp e tantos outros;
· construímos os grandes centros comerciais, os shopping centers;
· criamos um sistema bancário informatizado, volátil e seguro para proteger as finanças;
· globalizamos as finanças e o planeta tornando-o um só mundo.
Apesar de todas estas conquistas, criamos uma multidão de pobres que se tornaram miseráveis e descartáveis como indivíduos e como nações, ultrapassando à cifra de 800 milhões de famintos e outros 800 milhões de sedentos, entre os quais 80 milhões de refugiados. Fomos surpreendidos pela pandemia do corona vírus que, pelo covid-19 já ceifou mais de um milhão de vidas pelo planeta, num verdadeiro genocídio.
Como consequência de tudo isso, o século XXI se encontra num intercruzamento de todas as crises da humanidade: cultural, espiritual, familiar, religiosa, sanitária, alimentar, ecológica, política, econômica e social, numa verdadeira mudança de época, muito mais profunda do que apenas uma época de mudanças.
Vejamos como as primeiras comunidades cristãs souberam fazer uma leitura teológica do contexto em que se encontravam no século I e ofereceram respostas concretas aos desafios presentes.
Lucas escreve o livro dos Atos dos apóstolos pelo final do século I em Antioquia da Síria, a terceira cidade do Império Romano, grande centro comercial, formada por povos de diversas culturas. As tradições judaica, grega e romana se entrelaçavam. As comunidades cristãs aí organizadas sofriam a influência de mentalidades diversas. O evangelho vem ajudá-las a discernir o verdadeiro caminho da vida que o ensinamento e a prática de Jesus revelaram.
Aprenderam que o seguimento de Jesus se dá não pelos critérios do poder, das armas e do dinheiro, mas por cinco princípios fundamentais como um verdadeiro DNA da vida cristã: Martiria (testemunho), Diakonia (serviço), Koinonia (comunhão), Kerigma (anúncio) e Liturgia (celebração).
A partir desta identidade, impulsionados pelo Espírito Santo, estas frágeis comunidades realizaram, em curtíssimo espaço de tempo, uma grande obra evangelizadora no mundo em tríplice dimensão:
A dimensão do tempo. Os discípulos e discípulas anunciam o reino messiânico por meio de “sinais e prodígios” (cf. At 2, 22.43; 4, 16. 30; 5,12; 6,8; 8, 6.13; 14,3; 15,12), reveladores deste tempo favorável de Deus, agindo em favor da vida e da salvação de seus filhos e filhas. A pessoa de Jesus é assumida como o kairós de Deus por excelência. Lucas o expresa pelo advérbio “hoje” (cf. Lc 3, 11.22; 4,21; 5,26; 13,22-23; 19, 5 .9; 23,43). Jesus permanece vivo e atuante nas palavras e ações dos seus discípulos e discípulas que o acolhem, e por isso, se reúnem e se amam fraternalmente em cada momento, “dia após dia” (At 2, 41.47; 4,42). O tempo é decisivo para a difusão da Boa Nova de Jesus Cristo que se faz presente no agora.
A dimensão do espaço. “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria e até os confins da terra” (At 1,8). Esse é o caminho da Palavra a partir da ressurreição de Jesus. Os evangelizadores vão “de lugar em lugar anunciando a Boa Nova” (8,4). A mesma atitude itinerante de Jesus na Palestina é vivida agora pelos seus discípulos e discípulas. Há um contínuo movimento dos agentes de evangelização, num compromisso missionário, assumido num regime de urgência, preenchendo todos os espaços possíveis com a boa notícia do tempo da salvação de Deus, realizado em Jesus Cristo. Os verbos “prosseguir” (13,51; 16, 10.40; 17,10; 18,23), “levantar-se” (9, 6. 40; 14,20; 26,16), “partir” (10,23; 16,10; 18,21), “embarcar” (13,13; 16,10) são indicativos desse dinamismo.
A dimensão do testemunho. “Recebereis uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas”. O testemunho de Jesus Cristo morto e ressuscitado dado pelos seus seguidores é o maior argumento de autenticidade da boa notícia acompanhada de sinais e prodígios. Assim o faz Pedro em Jerusalém, após a descida do Espírito Santo (2,32), após a primeira cura de um deficiente físico (3,15) e na casa de um pagão, Cornélio (10,39-43). Também Paulo, em sua conversão e em suas viagens missionárias: numa sinagoga em Antioquia da Pisídia (13,46) e em Jerusalém, diante dos judeus (22,20) e diante do rei Agripa (26,12-23). O próprio Senhor aparece a Paulo e lhe dá a missão de testemunhá-lo em Jerusalém e em Roma (23,11).
Que esta fonte inspiradora nos auxilie na reconstrução de tantos laços quebrados hoje e no reencantamento da vida!