TEOLOGIAS E DITADURA MILITAR-4
As teologias no contexto da ditadura civil militar 4
03-08-21
Nelito Dornelas
7- herança e desafios à Teologia da Libertação
Toda esta rica movimentação espiritual, intelectual e popular, gestada em nosso Continente Latino Americano nos deixa como legado que não basta apenas ter-se construído uma Teologia da Libertação, mas, lançado as bases para uma Igreja da libertação. A produção teológica é “ato segundo”, o mais importante é priorizar o processo de libertação dos pobres, com os pobres, pelos pobres e de toda a criação divina, que são “ato primeiro”.
As práticas libertárias devem abranger o ser humano integral, como conclamava Puebla, o homem todo e todos os homens! Libertação socioeconômica, política, pedagógica, erótica, ideológica, cultural e espiritual. Para isto deve servir a produção teológica. E isto não se dá sem consequências. É conflitiva, por mexer com interesses políticos e econômicos e provocar a desinstalação daqueles que se encontram alojados em suas zonas de conforto.
Quem produz Teologia da Libertação tem que estar comprometido com o cristianismo libertário e todas as suas consequências, assumindo os mesmos riscos dos oprimidos, excluídos e descartáveis. Aí se manifesta o compromisso de sua prática política, não apenas de uma compreensão intelectual, mas como uma forma concreta de vivência espiritual, cuja intuição esteve presente desde os inícios da Teologia da Libertação no enfrentamento à ditadura militar.
Mas, aqui há de se reconhecer que os avanços foram bem aquém do que necessitávamos. Esta prática libertária contribuiu enormemente com a redemocratização da sociedade pela superação da ditadura militar, mesmo com o derramamento do sangue de considerável número de cristãos e cristãs. Mas como constatava o Papa São João Paulo II, referindo-se à queda do Muro de Berlim, lamentando pelos tantos outros muros mais instransponíveis erguidos depois da queda daquele.
O mesmo pode-se dizer de nossa sociedade hoje. Há tantas outras formas autoritárias e excludentes que reclamam nosso engajamento e a contribuição específica, que o cristianismo libertário pode oferecer na construção de novos sujeitos na construção de um outro mundo possível, urgente e necessário.
8- Luzes apontadas pelo Papa Francisco
8,1- Aos Movimentos Populares
Em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, participando do segundo encontro mundial dos movimentos populares, assim expressou-se o Papa Francisco:
A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: os famosos três “Ts”: Terra, Teto e Trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a terra.
Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Quero esclarecer que falo dos problemas comuns de todos os latino-americanos e, em geral, também de toda a humanidade. Problemas, que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo.
Podemos dizer que precisamos e queremos uma mudança real, de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, os trabalhadores, as comunidades, os povos e nem sequer a Terra, a irmã Mãe Terra.
Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença.
Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos três “T”: trabalho, teto, terra, e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!
Vós sois semeadores de mudança, concebida não como algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que uma mudança de estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e do coração, acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. É preciso mudar o coração.
Este sentimento de pertencimento ao bairro, à terra, à profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade no dia-a-dia é o que permite realizar o mandamento do amor, não a partir de ideias ou conceitos, mas do genuíno encontro entre pessoas, precisamos instaurar esta cultura do encontro, porque ninguém ama um conceito, ninguém ama uma ideia; amam-se as pessoas.
A entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e idosos, vilarejos e comunidades, rostos e nomes que enchem o coração. A partir destas sementes de esperança semeadas pacientemente nas periferias esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por subsistir na escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques densos de esperança para oxigenar este mundo.
A Igreja não pode nem deve ficar alheia a este processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes e agentes pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os excluídos de todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a empreendimentos, construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da saúde, desporto e educação. Estou convencido de que a cooperação amistosa com os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os processos de mudança.
No coração, tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida na periferia dum grande império, uma mãe sem teto que soube transformar um curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até que brote a justiça.
Aponto algumas tarefas importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs.
8.2- A primeira tarefa é pôr a economia a serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.
Este sistema atenta contra o projeto de Jesus, contra a Boa Nova que Jesus trouxe. A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia, é um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence.
Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias, conjunturais. Nunca poderiam substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário.
Os governos devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas de economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos de trabalho, prover de adequadas infraestruturas e garantir plenos direitos aos trabalhadores deste setor alternativo.
Quando Estado e organizações sociais assumem juntos a missão dos “3Ts”, ativam-se os princípios de solidariedade e subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia plena e participativa.
8.3- A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz pela justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efetivamente constituído tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e, quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afetam seriamente as possibilidades de paz e justiça, porque a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos, sobretudo o direito à independência.
Os povos da América Latina alcançaram, como um parto doloroso, a sua independência política e, desde então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia de contradições, procurando conquistar uma independência plena.
Nos últimos anos, depois de tantos mal-entendidos, muitos países latino-americanos viram crescer a fraternidade entre os seus povos. Os governos dessa região juntaram seus esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de cada país e da região como um todo que, de forma muito bela como faziam os nossos antepassados, chamam de Pátria Grande. Peço-vos que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário manter a unidade contra toda a tentativa de divisão, para que essa região cresça em paz e justiça.
Digamos NÃO às velhas e novas formas de colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e culturas. Bem-aventurados os que trabalham pela paz.
Asseguro-lhes que o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança.
8.4- Fé e Política
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium de 24 de novembro de 2014, o Papa Francisco traz elementos fundamentais para aprofundamento do debate sobre fé e política.
“Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta” (EG 56).
No discurso aos formadores de opinião, na cidade do Rio de Janeiro em 2013, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa Francisco apontou os seguintes desafios a serem assumidos pelo conjunto da sociedade:
a) A vida nos cobra responsabilidade social que assumimos pela política. Por conseguinte precisamos reabilitar a política, que é uma das formas mais altas da caridade.
b) A política deve evitar o elitismo da democracia representativa, muitas vezes fechada no mero equilíbrio de representação de interesses; deve incentivar cada vez mais e melhor a participação das pessoas com a finalidade de assegurar a todos dignidade, fraternidade e solidariedade.
c) Participação e diálogo entre as diversas riquezas culturais fazem crescer o país. A única maneira para fazer avançar a vida dos povos é o diálogo e a cultura do encontro. Nesse diálogo, todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom. Esse diálogo exige humildade social, que abre mão de exigências hegemônicas culturais e sociais.
d) As grandes tradições religiosas podem desempenhar um papel fundamental para a convivência harmoniosa de uma nação, já que a laicidade do Estado garante sua convivência pacífica.
Coloquemo-nos diante destas perguntas apontadas pelo Papa Francisco
1. Reconhecemos, de verdade, que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade?
2. Reconhecemos que as coisas não andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos nossos bairros?
3. Reconhecemos que as coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaças constantes?
4. Somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global?
5. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social, nem na destruição da natureza?
6. O que podemos fazer diante desta desafiante realidade para sermos uma Igreja em saída que se faz luz no mundo da política?
Para continuar o debate
Encerramos este artigo com estas encorajadoras e desafiantes exortações do papa Francisco em Evangelii Gaudium.
“Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção de que Deus pode atuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque “trazemos este tesouro em vasos de barro” (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama “sentido de mistério”, que consiste em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf. Jo15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada.
A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força de vida... No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor lhe parecer, os nossos esforços” (EG 279).
Finalizando
Saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos (EG 49).