FAMÍLIA, FRÁGIL EMBARCAÇÃO

 Família: uma frágil embarcação na travessia da vida

Pe. Nelito Dornelas

A metáfora da frágil embarcação é apropriada para designar a travessia do ser humano desde o nascimento até a morte.

Do berço ao túmulo, em meio a tempestades e turbulências, vamos cruzando onda após onda, sem saber ao certo o que nos espera no porto. Estrelas podem nos guiar, há faróis que nos iluminam e nos apontam o horizonte, mas na maioria das vezes é às cegas que prosseguimos na navegação. A fragilidade da embarcação se revela em diversas situações na travessia da vida.

A vida familiar é uma embarcação tão frágil, que a tormenta da existência precisa ser enfrentada com outras embarcações para desafiar a magnitude perturbadora. Basta entrar no interior da casa de grande parte das famílias e percebemos logo o ar poluído que muitas famílias respiram: desemprego, doença, discórdia, gritos, violência. Muitas famílias não habitam em um lar, mas numa pensão. Cada um tem sua vida própria, individualista, aparecendo e desaparecendo para comer e dormir.

É a televisão ligada em certos programas permissivos, promotores da violência e as propagandas repetitivas e apelativas, o computador e os celulares substituindo as relações interpessoais. Multiplicam-se os laços virtuais e à distância substituindo as relações primárias, familiares e de proximidade, cara a cara, olho no olho. Na concepção de Zygmunt Baumann, as relações sólidas, construídas, lenta e laboriosamente, vão se derretendo. A “sociedade líquida”, com seus laços superficiais e descartáveis, toma o lugar dos contratos duradouros.

Ainda encontramos tantas famílias devastadas pelo álcool, pelas drogas ilícitas e por uma violência contínua. Aí as palavras se convertem em flechas que ferem e matam. Cria-se um clima de deserto e solidão, marcado pelo constrangimento e pela dor. Outra violência que também destrói e desestrutura a convivência familiar, é o consumismo. Nunca houve tanto acesso aos utensílios de bem-estar, que quando elevados à condição de ídolos, murcham e matam o calor humano.

Em muitas famílias, a embarcação se revela muito frágil, levando-as ao abismo. Nas águas turbulentas da sociedade atual, a dupla de pilotos, pai e mãe, dificilmente consegue manter firme o leme entre as mãos. Quantas famílias navegam sem rumo e sem direção.

A fragilidade da família só encontrará verdadeira calmaria quando orientar seu barquinho para o lago cheio de luz e repousante do amor divino que se faz presente em uma vida comunitária. Na comunidade encontra-se o aconchego da fé e da esperança, a tormenta se relativiza e se reduz a proporções administráveis. A tormenta não desaparecerá. A oração, a meditação, a contemplação e o engajamento comunitário não modificam nossos problemas pessoais ou familiares, mas mudam nossa atitude diante deles. O medo e o desconforto são substituídos pela certeza de que Deus é o primeiro capitão do barco. O leme pode estar em nossas mãos, mas é Ele quem nos ilumina e nos conduz pelos caminhos da salvação. E juntos somos mais.

Nesta frágil embarcação, vale retomar a espiritualidade de Edith Stein, mulher forte que soube unir o próprio sofrimento e morte no campo de concentração nazista de Auschwistz à cruz de Cristo. Filósofa e mística, judia de nascimento e cristã por conversão, insistia que “a religião é a raiz e o fundamento de toda a vida”. À pergunta de “como se pode começar a viver nas mãos do Senhor”, respondia com absoluta convicção: “Coloque-se diariamente em oração e encontrarás serenidade e paz. Isso fará um bem enorme não somente a ti, mas também ao trabalho e a todas as pessoas com quem tens de lidar. Minha vida recomeça a cada manhã e termina a cada noite”.

Em tempos de gigantescas tempestades vividas por ela e por seu povo, Edith Stein foi capaz de colocar sua frágil embarcação no infinito oceano de amor que é a misericórdia de Deus: “Existe uma vocação ao sofrimento de Cristo e, por meio deste, uma vocação a colaborar com sua obra de redenção. Quando estamos unidos ao Senhor, somos membros do Corpo Místico de Cristo: Cristo continua vivendo em seus membros e continua sofrendo neles. Esse sofrimento, suportado em união com o Senhor, é o sofrimento Dele aplicado na grande obra redentora e que, nesta, se torna fecundo. Trata-se de um pensamento fundamental de toda a vida religiosa”.

Este pensamento, assumido por cada família, poderá reforçar esta frágil embarcação na travessia da vida.

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