A VIDA PEDE PASSAGEM
A vida pede passagem
Pe. Nelito Dornelas
“Nós sabemos que passamos da morte para vida porque amamos os irmãos.
Aquele que não ama, permanece na morte” (1Jo 3, 14).
Para os povos indígenas e latino americanos a religião é imediatamente estruturante da vida das pessoas e ocupa o seu centro existencial. Tanto é assim que a casa da religião é, geralmente, construída no centro da aldeia.
Um dia um índio Guarani me disse que Jesus veio para os brancos, pois estes necessitavam conhecer os caminhos da salvação e não para os indígenas que já traziam as digitais da salvação em sua carne.
E um índio Xoklemg me fez uma afirmação desafiadora. Ele me disse que os cristãos afirmam que Deus é pai de todos e que todos somos irmãos. Enquanto que eles aprenderam de seus ancestrais o ensinamento de que se nos fizermos irmãos e assim o vivermos, Deus poderá ser nosso pai. Portanto, para a cultura Xokleng a paternidade divina é um imperativo ético e uma conquista.
A cultura popular latino americana mede, regula e estrutura todo o organismo social a partir das virtudes morais e das virtudes teólogas da fé, da esperança e da caridade. Elas são assimiladas, impregnadas e fortalecem a vontade humana na defesa e promoção da vida e do bem comum.
Essas virtudes são o critério de medida da bondade ou da maldade e determinam o modo de agir de forma conveniente ou inconveniente para cada pessoa singularmente.
Recordo-me aqui de Gabriel Garcia Marques, que, ao receber o prêmio Nobel de Literatura em 1982, na Academia Sueca fez o seguinte discurso:
Frente a opressão, o saqueamento e o abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios nem as pestes, nem as fomes, nem os cataclismos, nem sequer as guerras eternas através dos séculos e dos séculos, conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e que se acelera. A cada ano há 74 milhões a mais de nascimento que de óbitos. A maioria deles nasce nos países de menos recurso, e entre eles, por sinal, os da América Latina. Ao contrário, os países mais prósperos decidiram acumular suficiente poder de destruição, capaz de aniquilar cem vezes, não somente todos os seres humanos que existiram até hoje, senão a totalidade dos seres vivos. Sentimo-nos com o direito de acreditar que, no entanto, não é tarde para empreender a criação de uma utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida.
Nesta perspectiva afirma o Documento de Aparecia que o fato de sermos discípulos e discípulas missionários e missionárias de Jesus Cristo para que nossos povos tenham vida n’Ele, leva-nos a assumir evangelicamente, e a partir da perspectiva do Reino, as tarefas prioritárias que contribuem para a dignificação do ser humano e a trabalhar juntos com os demais cidadãos e instituições para o bem do ser humano.
O amor de misericórdia para com todos os que veem vulnerada sua vida em qualquer de suas dimensões, requer que socorramos as necessidades urgentes, ao mesmo tempo, que colaboremos com outros organismos ou instituições para organizar estruturas mais justas nos âmbitos nacionais e internacionais.
É urgente criar estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política na qual não haja iniquidade e onde haja possibilidades para todos. Igualmente, requerem-se novas estruturas que promovam uma autêntica convivência humana, que impeçam a prepotência de alguns e que facilitem o diálogo construtivo para os necessários consensos sociais (DAp 384).
É necessário sublinhar a inseparável relação entre o amor a Deus e o amor ao próximo, que convida todos a suprimir as graves desigualdades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens. Tanto a preocupação por desenvolver estruturas mais justas como por transmitir os valores sociais do evangelho situam-se neste contexto de serviço fraterno à vida digna (DAp 358).
Demos passagem à vida que quer livremente circular e prosseguir seu curso.