TEOLOGIAS E DITADURA MILITAR-3
As teologias no contexto da ditadura civil militar 3
Nelito Dornelas
2- A expressão do profetismo na história
O profetismo, em sua incidência sociopolítica, não é algo abstrato, mas encontra–se na vida pessoal ou grupal de quem o assume e, é sempre um surgimento individual ou coletivo, a partir do centro de uma situação conflitiva
. O profetismo é desprovido de qualquer forma de poder, a não ser a sua própria expressão de vida. Dirige-se ao povo, em geral, à sociedade, às classes dirigentes, de forma clara e pública. É movido pela sensibilidade aguçada para perceber os acontecimentos da realidade e qual deve ser sua intervenção no curso da história. Por isso, o profeta ou o movimento profético é perseguido, denunciado, maltratado, isolado, incriminado e morto. Razão pela qual o profeta ou movimento profético viver em permanente insegurança, sobretudo, pela consciência do destino daqueles que os precederam.Face à dramaticidade política a partir das décadas de 1960 vivida no Brasil, o profetismo aqui ressurgido, consistiu, por parte de muitos cristãos, leigos e leigas, religiosos e religiosas e diversos membros da hierarquia, até mesmo alguns bem graduados, em abandonar sua vida razoavelmente confortável nos conventos e colégios e irem ao mundo dos pobres, marginalizados e excluídos para alimentar-lhes a esperança. De fato, os excluídos, em geral, não têm esperança, somente possuem sonhos. O profetismo significou o revestimento da força de Deus que dá empoderamento aos pobres e os tornou sujeitos dos processos históricos e de construção da cidadania eclesial e política, graças ao surgimento da esperança, pois ter esperança é ter poder.
3- Uma retomada histórica
Ao longo da história a Igreja sempre se viu em demanda em torno do poder. A primeira luta se deu contra o Império Romano em busca da ‘libertas Ecclesiae’, da qual, com sucessivos editos de liberdade, culminando no Edito de Milão em 313, ela saiu vitoriosa e escrava, graças ao provimento de privilégios que recebeu e que foi acumulando ao longo dos séculos.
A “conversão” de Constantino nos deixa muitas dúvidas. Seria ele o santo imperador, inclusive com o título de 13º apóstolo, retratado por Eusébio de Cesaréia ou um ‘hábil’ político que percebeu que o poder absoluto não subsiste sem a sustentação da religião dominante?
“Depois da conversão de Constantino, vemos o cristianismo se tornar, de religião ilícita que era, numa religião tolerada, depois, rapidamente, numa religião privilegiada. Ficamos perplexos diante da facilidade com que essa religião de Estado, esquecendo a época ainda próxima em que apelava para a tolerância dos imperadores para que cessassem as perseguições, tornou-se por sua vez perseguidora e intolerante desde que se tornou oficialmente reconhecida”.[1]
O teólogo Lactâncio, encarregado de educar Crispo, filho de Constantino, escreve Sobre as mortes dos perseguidores:
“Eis que todos os nossos adversários estão esmagados, a paz foi devolvida ao universo, a Igreja, outrora abatida, está de novo em pé: a misericórdia do Senhor levanta, mais glorioso do que nunca, o templo de Deus que os ímpios tinham destruído. Deus suscitou príncipes que aboliram o império criminoso e sanguinário dos tiranos, dissipando por assim dizer a nuvem dessa sinistra época e concedendo a todos os corações a alegria e a mansidão de uma paz serena”.
Eusébio de Cesaréia, em sua obra sobre Constantino, pôs em sua boca as seguintes palavras:
“Uma grande impiedade pesava enormemente sobre os homens, o Estado estava ameaçado de uma ruína total como por uma epidemia de peste, era urgente encontrar um remédio eficaz para esses males: e qual foi o remédio que a Divindade inventou? Deus convocou o meu serviço e jurou que ele era apto a executar sua decisão. E foi assim que, partindo do mar dos bretões, lá em cima, e do país onde o sol se põe, eu, delegado por um poder superior, comecei a expulsar e a dissipar o terror que reinava por toda parte, para que a raça humana, instruída por meu intermédio, voltasse ao serviço da lei santíssima e, sob a poderosa direção do Altíssimo, se espalhasse a fé bendita”.[2]
4- O profetismo e o martírio
O profetismo e o martírio são gêmeos siameses inseparáveis. Ao longo da história do cristianismo, as vozes proféticas significaram uma chamada à conversão das estruturas eclesiais e da sociedade contemporânea. A motivação eclesiológica que levou a este engajamento sociopolítico de tantos militantes cristãos encontra sua expressão acabada nas palavras testemunhais de dois mártires cristãos, um é um bispo católico latino americano e outro e um pastor luterano, europeu.
Vejamos o que diz o Bem Aventurado Dom Oscar Romero, arcebispo-mártir de El Salvador:
“Devemos esclarecer, desde o princípio, que a fé cristã e a atividade da Igreja sempre tiveram repercussões sociopolíticas. Por comissão ou omissão, associando-as a um ou outro grupo social, os cristãos e as cristãs sempre exerceram influência no esquema sociopolítico do mundo em que viveram. O problema reside no ‘agora’ desta influência no mundo sociopolítico, para verificar se está ou não de acordo com a fé. Como primeira ideia, embora ainda muito geral, desejo propor a intuição do Vaticano II que está na raiz de todo o movimento eclesial hoje. A essência da Igreja repousa em sua missão de serviço ao mundo, em sua missão de salvar o mundo em sua totalidade, e de salvá-lo dentro da história, aqui e agora. A Igreja existe para agir em solidariedade com ‘as esperanças e alegrias, com as angústias e as tristezas ‘dos homens e das mulheres (cf GS 1). Como Jesus, a Igreja foi enviada para ‘levar a Boa-Nova aos pobres, para curar os corações contritos, para procurar e salvar o que estava perdido’ (Lc 4, 18; 19,10)”.
Outro testemunho é do pastor luterano, mártir do nazismo de Hitler, Dietrech Bonhoefer.
“A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Ela deve entregar todo o seu patrimônio aos necessitados. Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da comunidade, talvez tenham de exercer qualquer profissão profana. A Igreja deve participar das tarefas profanas da vida na coletividade humana, não como quem governa, mas como quem ajuda e serve. Ela deve dizer aos homens e mulheres de todas as profissões o que representa uma vida em Cristo, o que significa existir para os outros. A Igreja, particularmente, terá de opor-se aos vícios da hýbris, da idolatria, da força, da inveja e do ilusionismo como raízes de todos os males. Ela terá de falar de sobriedade, autenticidade, confiança, moderação e modéstia. Não poderá subestimar a importância do ‘modelo’ humano (que tem sua origem na humildade de Jesus e que, para Paulo, é tão importante), mas não pelos conceitos, mas pelo ‘modelo’ e palavra ganha ênfase e força”.
5- O cristianismo libertário
O cristianismo libertário, no Brasil, surge na década de 1950 e ganha visibilidade no começo dos anos de 1960, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), formula pela primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esta proposta surge a partir da cultura católica francesa progressista de Emmanuel Mounier e a revista Esprit, do padre Lebret e o movimento Economia e Humanismo, do jesuíta J.Y. Calvez, Esse movimento se estende a quase todos os países do Continente e encontra, a partir dos anos de 1970, sua expressão cultural, política e espiritual que ficou conhecida como Teologia da Libertação.
A Teologia da Libertação obteve maior impacto público, quando da celebração da Segunda Conferência do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM-1968), em Medellín, Colômbia, para fazer a recepção do Concílio Ecumênico Vaticano II em nosso Continente. Na ocasião, a Igreja Católica faz a opção pelos pobres e pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e encoraja o engajamento social dos cristãos pela transformação da sociedade. Em 1973, os cristãos engajados promulgam no Chile, pela Unidade Popular, o manifesto Cristãos para o Socialismo.
A partir de então, passou-se a enxergar tudo o que se referia à Teologia da Libertação, como sendo exclusivamente político. Julgamos necessário chamar atenção para os equívocos dessa leitura bastante distorcida do cristianismo libertário. A questão política faz parte de um conjunto maior desta forma de cristianismo, devido às situações específicas das ditaduras militares que iam se impondo no Continente Latino Americano. Segundo esta interpretação, o primado político teria concentrado toda atenção dos teólogos da libertação, deixando em segundo plano outros campos teológicos. Uma análise detalhada do conjunto das obras teológica da libertação descobre-se a produção de uma verdadeira Suma Teológica Latino Americana. Conforme afirma o teólogo uruguaio Juan Luís Segundo, que desenvolveu uma teologia contextualizada na bacia do Rio da Prata, a teologia da libertação consiste fundamentalmente na libertação da teologia.
Tomemos como exemplo o tratado da Teologia da Graça. Esta, desvinculada do automatismo dos rituais religiosos, do individualismo subjetivista, e inserida nas exigências de condições sócio históricas humanizadoras, apresenta um verdadeiro manual de construção de uma nova humanidade inaugurada por Jesus. Nela, o cristão, a cristã encontra-se situado em uma história social, na qual é vocacionado aos “bens da salvação”. Para acessá-los deve preservar a dimensão comunitária, dialogante e fraternal como principio norteador de sua existência. A graça se lhe apresenta com “dom” e “conquista”. É o “já” e o “ainda não” do Reino. É o despertar da consciência de que ele é sujeito na construção de circunstâncias favoráveis ao acolhimento e à circulação livre da graça.
Em chaves libertárias, são reinterpretadas a teologia dos sacramentos, de modo especial, do batismo, da penitência e da eucaristia, bem como a teologia dos ministérios, a liturgia, a exegese bíblica, a cristologia, a eclesiologia, a mariologia, a antropologia, a trindade, a penumatologia, a escatologia, a catequese, a teologia moral e até mesmo o direito canônico é redimensionado em perspectivas pastorais.
A teologia, em sentido estrito, é falar sobe Deus. Em sentido cristão, o locus teológicos por excelência são as bem aventuranças, codificadas no evangelho de Mateus, capítulo sexto. Nelas, são apresentadas três relações fundamentais: com Deus: Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus; com a criação divina: Bem aventurados os mansos porque possuirão a terra e, com as pessoas: Bem aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia.
A Teologia da Libertação entende que a experiência transcendental se dá no interior da história. Sendo assim, tudo o que é histórico deve ser teologizado. E que não há nenhum discurso teológico neutro.
Desde o inicio, os teólogos da libertação sempre estiveram bem conscientes do fato de que o ponctum dolens no seu diálogo com outras correntes teológicas situa-se, agudamente, nas condições diferentes em relação à experiência da transcendência no interior da história humana concreta.
6- O cristianismo reacionário
Doutro lado cresce e se aprofunda o cristianismo reacionário, com uma teologia conservadora, nascida nos Estudos Unidos da América, conhecida como teologia do império. Os principais representantes deste cristianismo reacionário, apropriado pelos órgãos de repressão das ditaduras militares no Continente Latino Americano são o filósofo estadunidense Michael Novak, o teólogo George Gilder e o pastor pentecostal tele evangelista Jerry Folwell, promotor da igreja eletrônica. Estes elaboraram uma teologia, a partir das paixões e dos interesses, radicada na crença incondicional na providência, de cunho fundamentalista, da qual surgirá a ideologia capitalista denominada e teologia da prosperidade.
As obras de Gilder foram assumidas como manual de restauração das políticas econômicas da administração de Ronald Reagan. O motivo de fundo é a reconstrução de uma competitividade capaz de aquecer uma economia que perde fôlego competitivo diante de ascensão de economias emergentes, dos países periféricos.
Os títulos das obras de Gilder já expressam seu pensamento político conservador: riqueza e pobreza, o espírito de empresas, o microcosmos, na qual o autor defende a ideologia do destino manifesto ao qual os EUA foram predestinados pela providência para prover a salvação do mundo, assim como outra Deus havia eleito Israel no passado.
Outro expoente do cristianismo reacionário, também muito utilizado pelos regimes autoritários e ditatoriais no Brasil e na América Latina, é o filósofo Michael Novak, um ferrenho adversário da Teologia da Libertação, cujos discípulos no Brasil são o professor Olavo de Carvalho, do lado católico e que vem formando outros discípulos, inclusive alguns padres altamente reacionários e o pastor pentecostal Silas Malafaia, do lado evangélico, que também vem arrastando grupos consideráveis de seguidores, baseado na pregação de um falso moralismo e puritanismo.
Michael Novak continua sendo o principal porta-voz dos grupos reacionários contrários às propostas de mudanças nos rumos da economia capitalista excludente, apontados pelo Papa Francisco, que tem afirmado reiteradamente: esta economia (capitalista) mata. E o papa tem convocado a todos para a globalização da solidariedade em contraposição a esta mundialização excludente.
A trajetória política de Michael Novak bem indica seu posicionamento reacionário: diretor da seção teológica do instituto das empresas americanas; fundador do instituto para a religião e a democracia, assessor da Ford, das administrações Carter e Reagan e do relatório Rockfeller para a América Latina; membro da direção internacional da Broadscasters, escolhido pelo Senado, que administra as rádios de propagandas dos EUA no mundo; líder conservador de leigos católicos contrários às orientações no campo da economia da Conferência Episcopal dos EUA; coautor das revistas This Word e Catholicism in crisis.
Sua tese fundamental é a defesa da criatividade competitiva como o único caminho realista para a fraternidade. A concorrência do mercado competitivo, livre dos movimentos sociais, é a melhor forma de caridade cristã. Elabora uma teologia que sirva de base para o capitalismo, abordando, nesta ótica, a providência, a criação, a trindade, a encarnação, a competição, o pecado original, a separação entre os reinos e a caridade.
O tele evangelista estadunidense Jerry Folwell, um dos principais articuladores do fundamentalismo pentecostal, elabora uma critica ferrenha ao mundo da política, vendo aí a principal ameaça ao fiel crente. Propõe um modus vivendi austero, longe do mundo da politica e profundamente capitalista.
A partir da administração Reagan, o Estado Liberal aproxima-se deste movimento fundamentalista e passa a ver esta forma religiosa de existência não como assunto privado, mas público, incorporando-a ao núcleo central da política.
O teólogo brasileiro Hugo Assmann, um dos principais protagonistas da Teologia da Libertação, afirma que entre estas duas concepções teológicas, a diferença “consiste no fato de que o teólogo conservador busca exorcizar demônios, enquanto o da libertação busca exorcizar falsos deuses. O conservador está aferrado a um tipo de deus e, por isso, está preocupado com o ateísmo. O teólogo da libertação, por isso mesmo e também por razões políticas e econômicas, está mais preocupado com a idolatria”.
[1] A. FAIVRE, Os leigos nas origens da Igreja, p 151
[2] EUSEBIO DE CESAREIA, Vita Constantini