PUEBLA 40 ANOS
PUEBLA 40 ANOS DEPOIS: AVANÇOS E RETROCESSOS
Pe. Nelito Dornelas
Para abordar sobre as tendências atuais da evangelização no presente e no futuro do nosso continente implica não perder de vista o princípio da realidade de onde brotam as tendências em andamento na ação Pastoral.
Para projetar o futuro há de compreender que as tendências não se inventam, pois elas brotam da realidade que sempre é ‘superior à ideia’.As tendências do presente podem ser projetadas no futuro, a partir de fatores em curso. Entretanto, por mais que o vislumbre e previna o futuro está sempre às voltas com o imprevisível. Foi o que aconteceu no tempo de Puebla (1979). Muitas surpresas aconteceram contrariando algumas projeções.
As contingências do presente não estão isentas de surpresas, pois pensar a realidade do nosso momento atual não nos dispensa de nossa responsabilidade e de nossa intervenção para mudar o curso da história. Fazer projeções ainda que com risco de equivocar-se é melhor do que não projetar nada, até porque caminhar é preciso, fazer história é necessário e fazer historia da salvação é imprescindível.
Renovação e Resgate
Por ocasião da realização da Conferência de Puebla, apesar de debates e embates em meio a regimes autoritários e a posturas eclesiásticas restauracionistas, a Igreja na América Latina vinha de uma década de profunda renovação e efervescência eclesial em torno do Concílio Vaticano II (1962 – 1965) e a Conferência de Medellín (1968) que, em dez anos se havia deixado para trás o regime de cristandade e promovido enormes mudanças:
- renovação da liturgia com criatividade e inculturação
- evangelização em perspectiva libertadora
- as comunidades eclesiais de base estavam sendo implantadas como nova forma de ser Igreja
- a Pastoral Social havia ganhado corpo frente ao tradicional assistencialismo
- a leitura popular da Bíblia vai ganhado corpo no meio dos pobres
- a teologia da libertação alimentava os processos eclesiais e sociais dos cristãos e cristãs inseridas profeticamente na sociedade
- brilhava o testemunho dos mártires das causas sociais
Como não poderia ser diferente, este novo rosto de Igreja na América Latina e Caribe marcou presença no processo de preparação e na realização de Puebla, ainda que suas conclusões tenham ficado aquém do esperado pelos que estavam empenhados na perspectiva conciliar e libertadora. O que havia sido consenso em Medellín, dolorosamente constataria que já não era consenso em Puebla.
A Conferência de Puebla, convocada para 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, foi pensada para atualizar em nosso Continente a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975), de Paulo VII. Daí a proposta de tema: A evangelização no presente e no futuro da América Latina e Caribe. Com a morte de Paulo VI em agosto de 1978 e a eleição de João Paulo II logo em seguida, o tema da evangelização foi mantido, porém o novo papa, mais preocupado em salvaguardar a ortodoxia, acrescentou a ela a temática da verdade: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem.
Em Puebla salvou-se a opção preferencial pelos pobres, acrescentando a opção pelos jovens, a partir de uma Igreja edificada pela pelo princípio de Comunhão e Participação.
Nessa análise, partiremos do momento presente, comparando-o ao contexto de Puebla há 40 anos, percebendo o que o momento atual guarda de diacronia e sincronia com aquele.
Como diacronia, em Puebla estava chegando à cúpula da Igreja atores de um longo processo de involução eclesial. Hoje, ao contrário, temos um papa reformador que resgata o Concílio Ecumênico Vaticano II e o ressurgimento da teologia eclesial libertadora, numa perspectiva de fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo.
Em Puebla temos uma Igreja desvencilhando-se e libertando-se do regime de cristandade. Hoje temos uma Igreja em meio a uma profunda crise da modernidade.
Como sincronia, tal como a Igreja que chegou a Puebla alvejada pelo sangue de seus mártires, a Igreja que vem de Aparecida e do pontificado de Francisco, vem também da grande tribulação de três décadas de involução eclesial, vivendo um tempo novo e de graça de resgate do Vaticano II e de Medellín.
Hoje, volta-se a falar dos pobres, de Pastoral Social, de comunidades eclesiais de base, de movimentos populares, de teologia da libertação, de Igreja profética, Dom Oscar Romero de El Salvador é canonizado, é São Oscar Romero. Sessam-se o olhar de suspeição e de punição por parte da Cúria Romana sobre teólogos e teólogas. Há um espírito e um esforço muito grande por parte do Papa Francisco em fazer com que a Igreja seja pobre e dos pobres, somando aos esforções de muitos leigos, parte do clero e de bispos.
Poucos poderiam imaginar o novo cenário eclesial positivo depois de três décadas marcadas por uma Igreja autorreferencial, dominada pelo clericalismo e promotora de uma espiritualidade pouco eclesial e desencarnada, distante do evangelho. Muito se falou e se escreveu nesses últimos tempos sobre o Renascer de uma esperança que se julgava batalha perdida.
Avanços e retrocessos
Também no contexto de Puebla, como contraponto ao movimento de renovação e efervescência eclesiais então vigentes, havia o refluxo de postura de neocristandade revisionista do Concílio Ecumênico Vaticano II.
Na América Latina havia a tendência à desconstrução de Medellín por segmentos recalcitrantes da velha Igreja anticonciliar. Falavam de corrigir interpretações errôneas, seja do Vaticano II, seja de Medellín, desautorizando reflexões e combatendo práticas libertárias. O mais curioso é que era um movimento vindo do centro da Igreja para a periferia, vindo da Cúria Romana e do CELAM atacando a CLAR - Conselho latino-americano dos religiosos, as conferências episcopais nacionais e as Igrejas locais.
Essa tendência procurava demonizar as comunidades eclesiais de base e a teologia da libertação, assim como colocar sob suspeita de politização da fé o compromisso social dos cristãos e até mesmo o testemunho dos mártires das causas sociais.
Para os segmentos reacionários tudo era visto como infiltração marxista, até a opção pelos pobres e a prática profética e evangélica de bispos era denominada de ‘bispos vermelhos’, lançando sobre elas uma desconfiança sobre sua autenticidade cristã. Em todo caso havia avanço da maioria e retrocesso de minorias.
Diacronicamente, comparando o tempo de Puebla e o momento atual, as posturas reacionárias e revisionistas da renovação conciliar e da tradição eclesial libertadora já não vêm do centro da Igreja, mas de segmentos tradicionalista e estão ligados a movimentos que se posicionam abertamente contra o Papa Francisco e o contra o Concílio Ecumênico Vaticano II.
Também hoje é diferente do tempo de Puebla, quando a maioria avançava e a minoria retrocedia, hoje, a grande maioria das forças da Igreja é reacionária e é uma minoria, que resistiu bravamente nas três décadas de involução eclesial, que continua sintonizada com o movimento de resgate da renovação conciliar e da tradição eclesial libertadora. Essa minoria continua apostando numa Igreja sinodal, profética e mais evangélica.
Hoje, é nos seminários que reside o nicho mais reacionário conservador e de resistência ao Papa Francisco.
Sincronicamente, comparando o contexto atual, ele é igualmente marcado pelo refluxo, não só de posturas de neocristandade como também de cristandade tridentina tradicionalista e fundamentalista, seja na religião, seja na política e na cultura.
Apesar da bela surpresa da Conferência de Aparecida (2007), se não fosse o Papa Francisco, Aparecida já teria desaparecido. O próprio papa se vê rodeado de vozes nostálgicas de um passado sem retorno, em oposição ao seu pontificado reformador, a começar por membros da própria Cúria Romana e, o mais escandaloso, é o silêncio da maioria dos bispos, feitos no perfil do processo de involução eclesial que reinou por três décadas.
Assim, com a volta do clericalismo e do tradicionalismo, em grande parte nos seminários, alguns movimentos de Igreja com muito dinheiro e com muita influência e poder, não hesitam em falar de cima dos telhados que é preciso ‘salvar a Igreja’, ‘voltar ao fundamento’, à ‘ortodoxia’, à ‘sã doutrina’, voltar a ‘tomar distância do mundo moderno e profano’.
A sede de participação e a repressão
O contexto de Puebla é caracterizado pela mobilização popular e pelas manifestações sociais na conquista do direito a participar da vida da sociedade. Foi marcado também pelo autoritarismo interno e externo à Igreja. No contexto externo está uma sociedade subjugada por cruéis e sangrentas ditaduras militares, onde imperava a censura, a repressão e a criminalização dos movimentos sociais, a corrupção do Estado, acompanhado do aumento do desemprego e da distância entre ricos e pobres. Perseguia-se a Igreja profética, que se colocava ao lado dos pobres.
Tempo de controles e advertências, de processos contra teólogos e teólogas, de silêncios obsequiosos, de zelo pela ortodoxia e pureza da doutrina. Nas visitas ad Limina os bispos se deparavam com uma Cúria Romana autoritária, promovendo censuras ao novo perfil de clero, em especial de bispos marcados pela tradição eclesial libertadora latino americana e nomeando bispos mais administradores que pastores.
No momento atual, diacronicamente ao tempo de Puebla, já não há ditaduras militares e respira-se ares de liberdade, de participação cidadã, fruto da conquista da Democracia, embora frágil e manipulada pelos donos do dinheiro, do capital e das fontes de renda e de poder.
No campo eclesial, Roma já não pune e não persegue os que se identificam com os pobres e suas lutas por libertação e a Cúria Romana já não controla e centraliza. Mas há uma crise do compromisso comunitário com comunidades eclesiais com baixo índice de participação e comprometimento com processos pastorais na perspectiva do Vaticano II e da tradição eclesial libertadora.
Em sincronia com o contexto de Puebla, estávamos sob o tacão de ditaduras, agora, depois de algumas décadas de governos de corte popular, marcados pela promoção de políticas de inclusão social, assistimos à ascensão de governos com posturas autoritárias e antissociais, que chegam ao poder, seja por eleições manipuladas pela mídia, seja através de golpes parlamentares avalizados por um poder judiciário politizado.
Diante da crise da democracia representativa, que representa os interesses dos donos do capital, aposta-se em governos antidemocráticos com posturas xenofóbicas e preconceituosas em relação a minorias, sataniza as políticas de centro esquerda de cunho popular que promoveram a inclusão social.
O campo religioso tem sido invadido pelas ideologias de direita em nome de um suposto e falso risco de invasão do comunismo. Com o apoio, principalmente do pentecostalismo evangélico e católico, ganham corpo as posturas fundamentalistas e tradicionalistas reacionárias, capazes de promover e legitimar governos de extrema direita, assim como de desqualificar iniciativas da Igreja na perspectiva da renovação promovida pelo Vaticano II e a tradição eclesial libertadora.
Para isso recorrem a métodos nada evangélicos como o linchamento público e a difamação nas redes sociais, o mesmo método dos novos anticomunistas e o uso de fake News, as falsas notícias pelas redes sociais.
Posturas antidemocráticas e sinodalidade
No âmbito social, no contexto de Puebla havia intensa participação e luta pela reconquista da Democracia. Em contrapartida justificavam- se as posturas antidemocráticas nos parâmetros da ideologia de ‘segurança nacional’, em nome da defesa da ‘civilização ocidental cristã’, frente ao perigo do comunismo. Respaldados por essa ideologia, direitos são suprimidos, em especial os relativos à participação cidadã e as conquistas sociais.
No âmbito eclesial vivia-se um franco processo de aprofundamento da sinodalidade eclesial, tanto em âmbito das conferências dos bispos a nível Continental, como nacional e regional. As Igrejas locais elaboravam seus planos de pastoral orgânico e de conjunto de forma participativa. As instâncias eclesiais se regiam por assembleias e conselhos de pastoral e os serviços da Igreja eram gestados por equipes de coordenação. Era costume envolver a comunidade eclesial, desde as comunidades eclesiais de base em processos de consulta, de elaboração de planos ou mesmo na preparação de grandes eventos, como a Conferência de Puebla que contou com farta contribuição das Igrejas locais.
Em contrapartida, no âmbito da Cúria Romana a sinodalidade eclesial toca o nível mais baixo de sua história, seja pela centralização e enfraquecimento das Igrejas locais, seja pela intervenção nos estatutos das conferências nacionais de bispos e nos seminários. A própria Conferência de Puebla teve explícito cerceamento da participação por parte de membros da Cúria Romana e do CELAM. Não permitiram a participação de teólogos da perspectiva de Medellín, que tiveram que atuar clandestinamente, do lado de fora da Assembleia.
No momento atual, diacronicamente ao tempo de Puebla, no âmbito social continua a luta pela democracia. Só que não para conquistá-la, mas para defendê-la frente a ascensão de governos com posturas de extrema-direita e programas de supressão da liberdade de expressão e dos direitos sociais.
No âmbito eclesial, diferente do tempo de Puebla, a sinodalidade na Igreja é mais uma insistência do papa do que uma aspiração de instâncias permeadas de clericalismo de clérigos e de leigos.
Sincronicamente, o tempo de Puebla no âmbito sócio-político havia os moralismos em torno ao combate à corrupção, a defesa dos valores da família, combate às ideologias de esquerda, em especial ao suposto comunismo. Com o pretexto de defender a ordem jurídica e constitucional, governos autoritários assumem o comando. Com um caráter populista, através de medidas aparentemente em favor do povo, defendem o grande capital nacional e, sobretudo, internacional, em especial ao sistema financeiro.
No âmbito eclesial, hoje, a sinodalidade da Igreja sobrevive como brasas sob cinzas nos espaços de resistência e resiliência, como são as comunidades eclesiais de base frente a volta a uma pastoral de conservação centralizada no padre, na paróquia, em torno a recepção dos sacramentos, ao espiritualismo e a práticas devocionais.
Hoje, continuar evangelizando pelas frestas abertas por Puebla, confirmadas por Aparecida e abençoada pelo Papa Francisco em Evangelii Gaudium, implica em caminhar pelas veredas abertas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II e por Medellín na fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo.
Revisitar estes 40 anos, apesar da distância no tempo e as diferenças do contexto, nos deparamos com intuições e diretrizes de evangelização que guardam toda sua atualidade no presente e permanecem como preciosas balizas na projeção da ação da Igreja no futuro.
Elas convergem com as tendências atuais presentes tanto na Igreja como na sociedade, colocando-nos no rumo certo que vai dar no Reino, do qual a Igreja é ‘gérmen e princípio’ na concretude de história.
Implica também em situarmo-nos no reverso da história, promovendo mudanças estruturais na Igreja, distanciando-nos de toda espécie de colonização, mediante uma verdadeira conversão pastoral, ecológica e estrutural.
Nota: Este texto é inspirado no artigo de Agenor Brighenti - Tendências atuais e evangelização no futuro – 40 anos depois de Puebla, pág. 204, in Puebla – Igreja na América Latina e no Caribe, Editora Vozes, 2019.