FAZER MEMÓRIA
Fazer memória: essência da vida cristã
Pe. Nelito Dornelas
“É bom saber que os copos nos servem para beber! O mal é que não sabemos para que serve a sede”. Pensamento árabe.
Memória é uma palavra tão antiga. Palavra antiga como aquelas árvores enormes, com troncos robustos, copas acolhedoras, raízes tão profundas, que parecem chegar até o ventre da terra, misturando-se com outras terras, outros povos, outras línguas e culturas. Na sua raiz, que vem desde o ventre da humanidade, desde o começo da língua falada por muitos povos, memória tem a ver com o corpo, com a mente, com o ventre, e, sobretudo, “memória tem a ver com a palavra desejo”, como nos recordava Rubem Alves (1988).
Fazer memória é recordar, fazer voltar ao cordis, ao coração. Recordar coisas do coração que fazem o nosso corpo sentir-se vivo no desejo para a vida. Memória tem a ver com a saudade das coisas passadas que, voltando ao coração, reavivem o desejo e trazem dentro o cheiro da vida futura.
Memória é saudade e arrepio pelo que ainda vai acontecer. E saudade é amor ausente presente simbolicamente.
Memória, saudade e desejo têm a ver com perfume. Um perfume traz de volta a pessoa amada. Um perfume nos faz voltar às terras que nos viram nascer, aos campos grávidos de colheitas, às muitas cores do céu, ao mar com suas cantigas de ninar, à cozinha da casa da nossa infância, ao colo protetor da mãe, ao abraço e beijo do primeiro amor.
Um perfume nos une ao passado e nos faz sonhar. Um perfume penetra suavemente na nossa pele e engravida os nossos sentidos. Um perfume nos faz ternos e eternos.
Ela quebrou o vaso, e derramou o perfume na cabeça de Jesus (Mc 14,3b). E Jesus sentencia solenemente: Eu garanto a vocês; por toda parte, onde esta Boa Notícia for pregada, também contarão o que ela fez, e ela será lembrada (Mt 26,13).
Recordo-me das palavras de Santo Agostinho: O corpo eucarístico de Cristo é a Igreja inteira, isto é, a totalidade dos fiéis.
De fato, do alto do Calvário quando Jesus entrega seu espírito ao Pai, quebra-se o frasco de alabastro do oriente e exala-se o perfume mais contagiante, capaz de despertar em toda humanidade a memória adormecida e fazer de cada pessoa que se aproxima deste mistério um ser eucarístico.
Não é sem razão que já no século terceiro, a Didaque compilou este enunciado: O altar de Deus são as viúvas e os órfãos. E mais: Os bispos devem olhar com grande cuidado e escrúpulo quem são os que trazem ao altar, na celebração eucarística, as esmolas para os pobres da comunidade. E em seguida apresenta uma vasta lista de pessoas das quais não se pode receber a oferta, pois mosca morta estraga um vidro de perfume, e um pouco de insensatez pesa mais do que a sabedoria e a honra (Ecl 10,1).
Para as primeiras comunidades cristãs a Eucaristia não precisava ser explicada, mas uma experiência comunitária que é preciso vivê-la. E mais: quando há divisões entre os cristãos, a eucaristia não é aceita por Deus.
De fato, diante de Deus nós somos o bom perfume de Cristo entre aqueles que se salvam e entre aqueles que se perdem: para uns, perfume de morte para a morte; para outros, perfume de vida para a vida. E quem estaria à altura de tal missão? (2 Cor 2, 15-16).