DESEJO OU REALIDADE?

 

Superação da violência e promoção da cultura da paz: desejo ou realidade?

Pe. Nelito Dornelas

 

A vida não pode ser uma queda de braços, uma rede de intrigas, uma permanente disputa de espaço e de poder. Nós somos filhos da Prodigalidade.

Felizes, de verdade, somente o seremos se formos pródigos, generosos e fraternos. É isto que torna a vida bela e amável. A nossa vida é passageira e ridiculamente breve. Não podemos perdê-la apenas com rusgas, rixas, controvérsias e contendas, tanto a nível pessoal, quanto social. Viver assim é um morrer a cada dia e um sepultar-nos a cada instante, perdendo-nos muito mais do que abrindo-nos ao presente, ao futuro e à eternidade. 

Ainda eram audíveis, quase, as palavras de Jesus, o profeta da Galileia, pronunciadas com espírito e coragem, do alto das montanhas, nas praças, nos templos das aldeias, à luz do dia, nas alcovas e nos bosques, noite adentro, quando confortava os tristes, devolvendo-lhes a alegria, tomava pelas mãos os perdidos, reerguendo-os, desconsertava os presunçosos, prepotentes e arrogantes.

Com palavras e gestos cheios de vigor e delicadeza, seriedade e beleza, a todos Jesus convidava à liberdade, à confiança, à largueza de coração, à compreensão, a uma vida afeiçoada ao mundo e a humanidade e apaixonada pelos céus e por Deus. E foram tantos os que, junto dele, redescobriram o que significa viver, expressando a beleza de sua alma, depois de anos de reclusão no cárcere do silêncio; caminhando com as próprias pernas, quando se imaginavam, para sempre, entrevados; sabendo-se, também eles, filhos e filhas de Deus, quando já se consideravam para sempre excluídos da terra e indignos dos céus, imorais, impuros, imundos, repulsivos aos homens e a Deus, perdidos.

Mas, nem bem começado, tudo já estava encerrado. Como num pesadelo, Jesus de Nazaré é vitimado exatamente por aquilo que mais tentara combater: o medo, a mentira, a mesquinharia, a estreiteza, a dureza de coração e o apego aos podres poderes. Tudo isto voltado contra ele, letalmente, numa sinistra e macabra mistura de religião, política, jogo de poder e traições.

Os discípulos de Jesus, se ainda não o sabiam, agora o aprenderam: nós, seres humanos, somos capazes, não só de dizer inverdades, gelidamente, de difamar alguém, maliciosamente, de calcitrar os mais lindos sonhos de amor, cinicamente. Não, a nossa frieza é mais glacial ainda: podemos chegar a uma brutalidade da qual não são capazes nem mesmo os animais.

Os cientistas asseguram-nos que os animais agridem e matam apenas em duas circunstâncias: ou quando se sentem ameaçados, ou para matarem a sua fome. Apenas o homem é capaz de interromper o voo feliz e gracioso de uma ave nos céus, que não é sua, mas de Deus, não para saciar sua fome, mas para aferir ou aprimorar a sua pontaria.

Um pássaro mortalmente ferido em pleno voo: Jesus de Nazaré. Por quê? Em nome de quê? Em favor de que ordem? Em defesa da religião? Em nome de Deus? 

Toda verdade, anunciada sem um sorriso nos lábios, é diabólica, ainda que se queira divina; todo juízo, pronunciado com a acidez da impiedade, é devastador, ainda que se apresente como edificante; toda religião, proclamada como uma sentença de morte, é demoníaca, mesmo que se tenha como sagrada; toda ordem, defendida, incondicionalmente, sem lágrimas nos olhos, é desumana, ainda que se considere justa e necessária. E todo medo, que nos leva à traição daquilo que em nós sentimos como verdadeiro, ainda compreensível, será sempre: mortal!

As marcas da violência e da maldade ficarão, para sempre, eternidade adentro, como resto de um grande sofrimento, dentro do qual, nos encontramos. Mas estas feridas abertas tornam-nos mais humildes, mais sábios, mais sensíveis, mais críticos, mais misericordiosos, fazendo-nos curador ferido, pois todos as sofremos em nossa própria pele. Daí nasce a nossa corresponsabilidade e missão de reconstruirmos os laços sociais quebrados e nos tornarmos indignados promotores da cultura da Paz, custe o que custar! 

Em homenagem à Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes, brutalmente assassinados na noite de 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro.

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